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eficazes, em grande medida, em razão de sua adaptabilidade. McChrystal (2015) avança o argumento, e defende que essa adaptabilidade seja escalada ao nível da organização como um todo. Para Sherman Kent (2015, p. 185) quadros de pessoal rígidos aumentam a inércia de qualquer grande organização.
Nesse sentido, McChrystal (2015, p. 76) relaciona adaptabilidade ao conceito de resiliência: a capacidade de um sistema absorver distúrbios e ainda manter suas funções e estrutura básica. No paradigma de resiliência, inspirado no ambientalismo5, os gerentes aceitam a inexorabilidade de ameaças inopinadas. Em lugar de desenharem defesas robustas e especializadas, criam sistemas que absorvam ou mesmo se beneficiem das dificuldades. Com efeito, uma boa análise prospectiva admite a existência de infinitos cenários futuros possíveis e, precisamente por isso, é importante que se identifiquem cenários de “wild cards” (curingas) – a respeito, ver James A. Dewar (1993).
Nessa linha, Taleb (2017) tipifica os sistemas em frágeis, que são afetados por choques; robustos, que resistem a choques; e antifrágeis, que se beneficiam de choques. Segundo McChrystal (2015, p. 80), a robustez é alcançada fortalecendo-se as partes do sistema, enquanto a resiliência resulta da melhor ligação entre essas partes, o que permite ao sistema reconfigurar-se ou adaptar-se em resposta a mudanças ou danos. Para o autor, é importante mudar o foco da predição para a reconfiguração.
Reconhecendo a inevitabilidade de situações inopinadas e utilizando sistemas que sobrevivam ou mesmo se beneficiem dessas surpresas, é possível superar cenários de incerteza.
Absorver a volatilidade (mudanças) é crucial na atividade de Inteligência. Como referido, Clark (2010) argumenta que o alvo típico da Inteligência é uma rede. Para McChrystal (2015, p. 84), é preciso ser uma rede para vencer outra rede. Redes mudam de forma e tamanho. São adaptáveis e resilientes, embora, por isso mesmo, nem sempre sejam absolutamente eficientes.
Por essa razão, um sistema preditivo, porque frágil, embora eficiente, é incapaz de superar uma rede adaptável. Operações de Inteligência minuciosamente planejadas, com pouca margem de decisão para as equipes, desenhadas para serem eficientes e precisas, tendem a ser custosas, lentas e confusas. Sistemas frágeis são eficientes em ambientes complicados. Em cenários complexos, é necessário resiliência ou, se possível, antifragilidade 6 .
Planejamento: relações em lugar de tarefas
Analistas e usuários são os únicos capazes de avaliar conteúdo e assim determinar valor para a busca (CLARK, 2010, p. 152). Isso reforça a necessidade de planejamento integrado e, mais do que isso, envolvimento do analista durante a execução de uma operação. A ideia de que
5 Para aprofundar a respeito, ver Waker e Salt (2006) e Flaherty (2018).
6 Taleb (2017) afirma ter pesquisado em diversos idiomas e não encontrado termo que defina o conceito de antifrágil.
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a Inteligência se desenvolve em um “ciclo” 7
induz a interpretar a atividade em fases estanques e condiz pouco com a realidade (HERMAN, 1996; CLARK, 2010). Além disso, como argumenta Herman (1996, p. 292), sistemas de requerimentos, em que analistas prescrevem necessidades específicas aos responsáveis pela busca, distanciam-se da realidade e não garantem sucesso. Clark (2010) agrega que esses sistemas são estruturas burocráticas que consomem tempo e recursos, adicionando pouco valor ao produto. Nesse modelo, não há priorização ou critérios para avaliação de conteúdo. Com isso, arrisca-se priorizar a quantidade de produção em prejuízo da qualidade.
Outro ponto importante é que, como observa McChrystal (2015, p. 98), times cujos membros se conhecem desempenham muito melhor. Em ambientes verdadeiramente complexos, as situações ultrapassam a habilidade de um único líder prever, monitorar e controlar. Equipes bem integradas e conectadas interna e externamente estarão melhor preparadas do que esse líder para decidir e inovar. É como se uma equipe de velejadores, em plena regata, dependesse de ordens do treinador para folgar a adriça da genoa ou passar a retranca.
Não obstante, há, pela própria cultura de compartimentação da Atividade de Inteligência, resistências à integração. Exemplo notório é a aversão das frações
operacionais à participação de agentes externos no planejamento e gestão de sua atividade. Como observa Clark, os “operacionais resistem aos esforços dos analistas em se envolverem no processo de desenvolvimento de sistemas e estratégias de busca. Seu mantra é ‘diga-me o que você precisa, que eu te entrego o dado’” (CLARK, 2010, p. 154, tradução nossa).
Compromete o planejamento minucioso o fato de, como demonstra Clark (2010, p. 150), o analista geralmente não saber o que o operacional pode fazer e, frequentemente, enfrentar dificuldades em delimitar com precisão sua necessidade específica. Por isso é importante que o responsável pela busca 8
entenda o que o analista realmente precisa e, da mesma forma, auxilie-o nessa definição.
No caso das Operações de Inteligência, quando geridas no modelo de comando e controle, a documentação elaborada para planejar as ações se distancia da realidade tão logo se executem as atividades. As demandas recebidas das frações analíticas, também documentadas, tendem a passar pelo mesmo processo. É que fatores importantes comprometem a utilidade de planejamentos inspirados na cultura fordista. Como observam Sutherland (2016) e Sabbagh (2013), em ambientes complexos, caracterizados pelo desconhecimento de variáveis significativas, mudança e imprevisibilidade, não é possível prever o que irá acontecer. Assim, em lugar de se impor um caminho, é mais eficaz uma abordagem
7 Há diversos modelos de “ciclos de Inteligência” na literatura. Lowenthal (2006, p. 65) reproduz e critica ciclo apresentado pela CIA em 1993 no guia A Consumer’s Handbook of Intelligence, em que são
representados cinco “passos” dentro do ciclo: (1) planejamento/direcionamento →(2) coleta de dados →(3) processamento →(4) análise →(5) difusão → (1)...
8 O termo busca aqui entendido em sentido lato, como aquisição de dado de difícil obtenção, não importando o meio empregado)
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empírica e adaptativa, com tolerância a falhas e abertura a formas inovadoras de trabalhar durante a execução.
Sabbagh (2013, p.19) faz um paralelo entre o planejamento na construção civil e no desenvolvimento de software. Pode-se substituir o desenvolvimento de software pela condução de caso na Inteligência: diferente da construção civil, em que as variáveis são conhecidas e dominadas, aqui não se conhecem todas elas e grande parte das conhecidas não estão sob controle.
Nesses ambientes complexos, Sabbagh (2013, p. 24) afirma que praticamente tudo, exceto a visão do produto, pode mudar em tempo diminuto. Em Operações de Inteligência, é comum haver alterações no ambiente operacional, nas rotinas de trabalho, nos métodos empregados, nas demandas do usuário e mesmo nos alvos. Sabbagh (2013) argumenta que iterações curtas, no sentido de desenvolver o trabalho em parcelas intermediárias com feedback constante, permitem que essas mudanças possam ser mais rapidamente inseridas no projeto.
Segundo Sutherland (2016, p. 16), as gerências cobram, tradicionalmente, dois elementos dos projetos: controle e previsibilidade. O resultado é uma grande quantidade de documentos. O planejamento de detalhes para que não haja erros, comprometimento do orçamento ou perda de prazo, consome tempo e energia. Para o autor, isso é difícil de ser realizado em cenários complexos. Na prática, é recorrente o surgimento de problemas ou inspirações para solucioná-los.
É necessário ter um plano, mas segundo Sutherland (2016, p. 119), ele deve ser refinado ao longo do projeto. O autor defende que se planejem mais detalhadamente as atividades que serão realizadas num período curto de tempo, como uma ou duas semanas, deixando as ações futuras traçadas em linhas gerais.
Para que as principais partes interessadas (por exemplo, analista responsável, encarregado de caso, equipe operacional, gerência média e alta direção) possam avaliar e direcionar a estratégia operacional, é fundamental que se defina qual objetivo ou necessidade se pretende atender. Dito de outra forma, estabelecer quais condições se querem satisfeitas ao final do caso, operação ou ação de inteligência favorece a definição da estratégia de execução.
A partir dessa definição é que as equipes decidirão, de forma dinâmica, o que devem fazer (ver item seguinte: níveis de tomada de decisão). Os argumentos de Clark (2010) e Herman (2006) reforçam a necessidade de o analista identificar e priorizar lacunas em seu conhecimento. A busca de dados atuará nessas lacunas priorizadas. Os operacionais devem ser incentivados a testar novas ideias em lugar de manter estratégias de busca que nem sempre obtêm o dado necessário (CLARK, 2010, p. 160). Trazendo os princípios de gestão apresentados por Sutherland (2016) para esse contexto, a melhor forma de otimizar esse planejamento é realizá-lo de forma integrada, envolvendo as principais partes interessadas.
Para Clark (2010), fechar as lacunas em curto prazo de alvos prioritários requer alocar de forma eficiente as fontes de busca existentes
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baseadas a) na importância da necessidade ou tarefa específica; b) no valor do dado obtido, em caso de sucesso da busca; c) na probabilidade de sucesso do esforço de busca; d) nos custos e riscos. O autor defende que os operacionais podem ajudar na reunião9 de dados se tiverem acesso à estratégia de análise. Ao fim, ambos os esforços de busca e análise se beneficiam dessa abordagem integrada.
Para isso, as lideranças devem trabalhar para criar um ambiente abrangente que estabeleça vínculos produtivos e criativos entre as partes, em lugar do microgerenciamento por comando e controle (McCHRYSTAL, 2015). Mais do que traçar planos que descrevam tarefas minuciosas, o desejável é que se planejem essas relações entre pessoas. A inovação e a criatividade serão produtos do trabalho coletivo.
Para isso, o planejamento precisa mapear as principais partes interessadas (SABBAGH, 2013) no caso– ainda que outras partes possam ser incluídas depois. Esse mapeamento auxiliará os responsáveis a calibrar os esforços da coleta, análise e busca, além de delimitar os participantes de reuniões de acompanhamento. Mais importante, propiciará aos gestores desenhar as melhores formas de interação entre essas partes.
Essas relações não se resumem ao pessoal interno. Como afirmou Sherman Kent (2015, p. 180), a parte mais importante do negócio da Inteligência é o relacionamento adequado com quem a utiliza. É fundamental que se planejem as relações com o usuário,
devidamente mapeado como parte interessada, para que a atividade possa ser melhor guiada e adaptar-se a variações em sua demanda. Como lembra Kent, a não ser que a Inteligência seja completa, precisa, oportuna e aplicável a um problema existente ou que está por existir para o usuário, ela é inútil.
Níveis de Tomada de Decisão
Segundo Sabbagh (2013), a superação das dificuldades impostas pelos ambientes complexos exige das organizações que incorporem coragem para confiar em suas equipes e deixem-nas livres para realizar seu trabalho. Sutherland (2016, p. 61) lembra que “abrir mão do microgerenciamento cotidiano e do controle é difícil, mas fazer isso no mundo secreto da inteligência e das operações especiais é ainda mais desafiador” (tradução nossa). Não obstante, transferir para os executores decisões e capacidade de se organizar proporciona eficácia e redução de riscos. Com isso, acaba-se por entregar eficiência por meios distintos daqueles empregados no fordismo.
Segundo a International Federation of Accountants (IFAC, 2014, p. 8) a governança no setor público compreende as disposições instituídas para garantir que os resultados desejados pelas partes interessadas sejam definidos e alcançados. De forma mais ampla, o sistema de governança (ver TCU, 2014) representa a forma como diversos atores se organizam, interagem e procedem para obter boa governança. Isso envolve
9 Entendida como a juntada de dados por qualquer meio e de qualquer origem
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estruturas administrativas, processos de trabalho, instrumentos, fluxo de informações e o comportamento das pessoas envolvidas na avaliação, no direcionamento e no monitoramento da organização.
Nesse sistema, governança e gestão se diferenciam pelo nível em que atuam na organização. A governança tem como funções definir o direcionamento estratégico; supervisionar a gestão; envolver as partes interessadas; gerenciar riscos estratégicos; gerenciar conflitos internos; auditar e avaliar o sistema de gestão e controle; e promover a accountability (prestação de contas e responsabilidade) e a transparência. Por sua vez, a gestão tem como funções colocar programas em prática; garantir a conformidade com as regulamentações; revisar e reportar o progresso de ações; garantir a eficiência administrativa; manter a comunicação com as partes interessadas; e avaliar o desempenho e aprender (TCU, 2014).
De acordo com essa perspectiva, no âmbito da organização há três instâncias de gestão: administração executiva, tática e operacional. A administração executiva avalia, direciona e monitora a organização. Trata-se da autoridade máxima da organização, e seu nível estratégico torna-a responsável pela harmonização da organização com sua governança externa. A gestão tática coordena a gestão operacional em áreas específicas. A gestão operacional executa processos produtivos finalísticos e de apoio.
(TCU, 2014)
A interposição de decisões táticas e operacionais à alta administração acaba por saturá-la de informações e demandas, prejudicando o desempenho institucional e comprometendo sua função de governança.
Na lógica de comando e controle, a gestão executiva e tática deixa pouca liberdade para a operacional. Já na década de 1980, Takeuchi e Nonaka (1986) apontavam para a pouca efetividade desse tipo de abordagem para a criatividade e inovação. Em seu estudo, os autores identificaram seis caraterísticas nas equipes que se destacavam no desenvolvimento de produtos. Particularmente em atividades inseridas em cenários complexos que atendem a demandas cambiantes, métodos de gestão baseados em times (1) com instabilidade embutida10, (2) auto-organizáveis, (3) resilientes11, (4) cujas fases de desenvolvimento são sobrepostas, (5) com aprendizado baseado em múltiplas fontes de informação e (6) inseridos em corporações com controle sutil (oposto ao comando e controle), apresentavam níveis significativamente maiores de sucesso.
Modelos de governança que estabelecem o controle da gestão operacional12 por níveis muito estratégicos têm sido criticados de forma recorrente. Sherman Kent (2015, p. 125-129) argumenta que esse controle, na Atividade de Inteligência, deve ser mais relacionado ao foco, qualidade e gerenciamento de equipes do que quanto
10 No sentido de definir objetivos genéricos altamente desafiadores sem fornecer conceitos claros do produto que, ao fornecer ampla liberdade e, ao mesmo tempo, objetivos altamente desafiadores,
11 No original, os autores utilizam o conceito “instabilidade incorporada”. Aqui utiliza-se resiliência em razão da proximidade com a definição apresentada acima (adaptação a mudanças).
12 No sentido de inferior a tático e estratégico.
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à forma, que é responsabilidade dos executores. Para o autor, a descentralização da função de controle é fundamental. O ideal é descer a função de controle o mais baixo possível na hierarquia. Da mesma forma, o controle deve controlar, continuamente, a quantidade de documentação que exige das frações, mantendo-a ao menor nível possível.
Esse movimento de descer o nível decisório proporciona ainda ganhos de motivação com impacto na produtividade. McChrystal (2015, p. 211) cita estudos que demonstram que o “empoderamento” aumenta a satisfação dos funcionários e que a descentralização do controle cria uma motivação intrínseca pelas tarefas. Para o autor, “um indivíduo que toma uma decisão se torna mais interessado em seu resultado” (tradução nossa). Ele defende um sistema descentralizado que empurre o controle (autoridade) para as franjas da organização.
Esse movimento permite a divisão de responsabilidades, preservando a autoridade máxima e transferindo implicação por decisões técnicas para instâncias inferiores. A alta gestão fica mais livre para dedicar- se à criação e manutenção de um ambiente favorável ao trabalho, melhorando a relação entre as equipes, entregando-lhes as melhores ferramentas e batalhando pelo seu bem-estar.
Equipes: transparência e fluxo de informações
A formação de equipes analíticas e operacionais motivadas, competentes e eficientes é fundamental na Atividade de Inteligência. Equipes, desde que não sejam
muito grandes, produzem muito mais que indivíduos. Estudos demonstram que o tamanho recomendado para uma equipe é de sete pessoas, tolerando-se duas a mais ou menos. Se a equipe é muito grande, sua produtividade diminui (para referências a respeito, ver Sutherland, 2016).
Takeuchi e Nonaka (1986) identificaram que as melhores equipes são transcendentes, autônomas e multifuncionais. Sutherland (2016) recomenda que elas se identifiquem com o produto que estejam desenvolvendo e não com a especialidade de cada um. Para o autor, é desejável que a equipe possua todos os requisitos materiais e intelectuais necessários para concluir sua tarefa.
Contribui para essa transcendência o sentimento de pertencimento e a consciência que cada indivíduo tem da importância de seu trabalho para o todo. Por isso, é importante que todos na equipe saibam do que os outros fazem e acreditem na relevância de seu trabalho.
McChrystal (2015, p. 139-141) argumenta que o hábito de reter informações deriva de preocupações com segurança, mas também da influência de processos mecanicistas bem definidos, em que indivíduos necessitam conhecer apenas o que lhes compete para realizar seu trabalho. Oautor critica a lógica da “necessidade de conhecer” em razão de ela supor a existência de algum ente superior com conhecimento total capaz de distribuir cada material a quem “precisa conhecer”. Contudo, prossegue, para transitar em segurança em um ambiente interdependente é necessário que cada equipe possua um entendimento holístico das interações entre todas as partes. Para que os planos
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funcionem, todos devem enxergar o sistema como um todo.
Sabbagh (2013, p. 20) ressalta a importância da qualidade da interação entre os membros do time para a redução de problemas no desenvolvimento dos trabalhos e facilitar a comunicação e o feedback.
Como observa Sutherland (2016), liderança não se confunde com autoridade. Um gerente deve possuir conhecimento e ser um líder- servidor. Deve ser capaz de constantemente repassar o feedback dos clientes (no caso de operações de inteligência, analistas) para a equipe.
Ou seja, um bom gerente operacional conhece a temática e o ambiente em que trabalha. É fundamental que tenha poder de tomar decisões e esteja disponível para explicar à equipe o que tem de ser feito e por quê. É, em última instância, o responsável pelo valor do produto operacional.
É importante que, periodicamente, as frações operacionais apresentem à análise alguma produção com valor, preferencialmente de forma documentada. Contudo, como observa Sabbagh (2013, p. 22-23), a documentação não substitui a interação. Ela a facilita, pode ser utilizada como um registro permanente, mas é importante que haja reuniões de avaliação. Clark (2010) sugere medir a satisfação do usuário com perguntas como “Qual o percentual do assunto-alvo foi resolvido?” Com base nessas reuniões, as frações operacionais podem rever seus procedimentos e atualizar o planejamento.
Como observa Sutherland (2016, p. 77), quanto mais cedo o cliente tiver amostras
do resultado, mais rápido será capaz de sinalizar se o que se está produzindo é algo de que ele precise. A entrega de documentos com resultados periódicos é uma oportunidade para avaliar junto ao analista se o seu conteúdo coincide com suas necessidades, se resolve ao menos parte de seu problema e se as equipes caminham em boa direção. Para Sabbagh (2013, p. 23) essa entrega iterativa possibilita um feedback confiável. As frações operacionais devem buscar o máximo de feedback sobre o que foi entregue, de forma que a próxima entrega seja melhor planejada. Essa interação e iteratividade desconstrói a ideia de “nós” e “eles”, colocando operacional e analista do mesmo lado (SABBAGH, 2013).
É fundamental que essa equipe motivada, transcendental, autônoma e multifuncional, com alto nível de interação entre seus membros e com acesso a feedbacks constantes, confiáveis e consistentes, esteja também absolutamente conectada às demais equipes da organização. Nesse sentido, McChrystal (2015, p.125) alerta para a importância de que, quando confinadas em “silos”, as equipes podem alcançar uma adaptabilidade tática, mas no nível estratégico a organização permanecerá rígida. Com isso, o autor defende que haja fluxos produtivos de informação entre as equipes, integrando- as de forma similar à integração entre os indivíduos que conformam uma única equipe. Para isso, o autor defende que sejam mantidas conferências abertas e transparentes, coordenadas pelas lideranças, com o objetivo de aproximar as pessoas da organização.
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Conclusão
A velocidade das mudanças e a interdependência observadas atualmente criam um ambiente complexo, organizado em redes, diferente do que a ideia de “ciclo de inteligência” deixa transparecer. Processos estanques, com funções bem delimitadas, são pouco eficazes nesse contexto.
Para adaptar-se a isso, é necessário que os órgãos de Inteligência revejam suas definições em relação ao compartilhamento de informações, equacionem melhor os níveis para tomada de decisão, e repensem suas formas de liderança.
Oplanejamento e a execução das Operações de Inteligência devem ser liquidificados13 e abordar um gerenciamento leve e dinâmico, capaz de absorver inovação, criatividade, novas formas de trabalhar e aprendizado com as falhas. Com efeito, esse tipo de abordagem merece discussão e estudos aprofundados que avaliem sua adequação
13 No sentido adotado por Bauman (2001).
em situações nas quais a atuação em rede se faça necessária, como é o caso do combate ao crime organizado.
No escopo desta revisão bibliográfica, essa mudança passa pela superação do modelo baseado em comando e controle, com “empoderamento” decisório das equipes operacionais, para que se tornem mais eficazes e criativas. Para isso, é importante que o planejamento priorize as relações entre pessoas, mais do que as tarefas que serão executadas, de forma a maximizar a transparência e o fluxo de informações entre as equipes. Isso inclui a aproximação entre equipes operacionais, analistas e demais partes interessadas nas Operações de Inteligência.
Finalmente, e igualmente importante, é fundamental que as equipes trabalhem motivadas, identificadas com o produto de seu esforço e cientes do impacto de seus resultados no desempenho das demais frações.
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A CONFIANÇA COMOREQUISITO PARA A GESTÃO DE SEGURANÇA EM ORGANIZAÇÕES DE INTELIGÊNCIA DE ESTADO
Marcel Carrijo de Oliveira *
Resumo
Os níveis de confiança intraorganizacional estão associados ao engajamento no trabalho e à predisposição a observar normas e comportamentos seguros. Este estudo objetiva analisar como as relações de confiança e desconfiança podem impactar a gestão de segurança em Organizações de Inteligência de Estado (OIEs), instituições encarregadas de realizar missões especializadas que requerem sigilo e são condicionadas por esse imperativo. De modo a viabilizar o estudo em modelo analítico, e na ausência de estudos anteriores sobre esse tema, foram analisadas as interações entre os estudos sobre confiança e desconfiança, sobre gestão de segurança e de segurança da informação, e sobre a Atividade de Inteligência. A partir disso, observou-se que a promoção da confiança e a mitigação da desconfiança poderiam trazer benefícios para esse tipo institucional, cujas características dificultam e favorecem - simultaneamente - a adoção de medidas de construção e manutenção da confiança. Enfim, são apresentadas medidas identificadas na literatura que objetivam a modernização da gestão de segurança a partir do fortalecimento da confiança intraorganizacional.
Palavras-chaves: Inteligência, Gestão de Segurança, Confiança,
TRUST AS A REQUIREMENT FOR SECURITY MANAGEMENT IN STRATEGIC INTELLIGENCE AGENCIES
Abstract
The levels of trust within organizations are widely associated with employee engagement, their willingness to observe rules, as well as the internalization of secure behaviors. This study analyzes how trust and distrust may impact security management in Strategic Intelligence Agencies (SIAs), specialized public organizations that operate in secrecy and are constrained by this requirement. In the absence of other known studies in this field, we have chosen to analyze the interactions between studies on trust and distrust, on security and information security management, and on Strategic Intelligence. We then identified and described how the characteristics common to SIAs tend to simultaneously favor and hamper measures designed to build and preserve trust, as well as those aimed at mitigating distrust. Lastly, we propose that fostering trust and reducing distrust would be beneficial to SIAs, and derive from the literature alternatives potentially beneficial to security management based on the promotion of trust.
Keywords: Intelligence, Security Management, Trust
* Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.
Artigo recebido em julho/2018
Aprovado em outubro/2018
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Marcel Carrijo de Oliveira
Introdução
“O mundo está mudando”. Essa talvez seja a justificativa mais comum quando revisitamos ideias, planos ou formas de fazer. Tal noção - antes precursora da inovação - é, atualmente, óbvia, difusa e limitada. Em um contexto global no qual as mudanças ocorrem de forma constante, acelerada, sobreposta e colidente, seriam as práticas tradicionais de gestão e a filosofia de liderança organizacional suficientes para explicar o sucesso de organizações no século XXI?
O mais recente relatório Gallup (2017, p. 71) sobre o estado do ambiente de trabalho nos Estados Unidos, centro nevrálgico dos estudos e das práticas de gestão contemporânea, informa que apenas 33% dos trabalhadores estadunidenses estão engajados - ou seja, altamente envolvidos e entusiásticos a respeito de suas funções e de seu local de trabalho-, contra 27% dos trabalhadores no Brasil e 70% daqueles que atuam nas empresas com melhores índices no mundo. Essas estatísticas são ainda mais impactantes quando se considera que colaboradores ativamente engajados são, em média, 17% mais produtivos e 21% mais lucrativos (GALLUP, 2017, p. 68).
Obaixo engajamento no trabalho extrapola, contudo, as questões meramente produtivas. De interesse para este estudo, o engajamento afeta a observância de regras de segurança e de segurança da informação, a disposição para reportar incidentes, o compromisso de manutenção do sigilo, a intenção de permanecer na instituição, entre outros (D’ARCY e GREENE, 2014, pp. 476-479). A promoção de relações funcionais seguras
envolve, nesse contexto, compreender como indivíduos e organizações interagem e quais fatores potencializam essa interação.
O estudo ora proposto objetiva discutir como dois fatores de influências sobre o engajamento no trabalho - as relações de confiança e de desconfiança intraorganizacionais - impactariam a gestão de segurança em Organizações de Inteligência de Estado (OIEs), organizações cujos processos e produtos são transversalmente afetados pelo sigilo e cujo objetivo fundamental é o assessoramento ao processo decisório nacional de mais alto nível. Esse tipo institucional tende a modelar suas estruturas de proteção no formato “castelo e fosso”, em que são estabelecidos pontos exclusivos de entrada e saída física e lógica da instituição - como a ponte levadiça de um castelo - de modo a restringir o acesso de indivíduos indesejáveis. Considera-se que tal modelo requer relações de confiança intraorganizacional sólidas para ser efetivo, pois uma vez concedida autorização de acesso, a pessoa poderá mover-se com razoável liberdade nos ambientes internos.
Estabelece-se como cerne desse estudo a noção de que a promoção de relações de confiança e a mitigação daquelas de desconfiança seriam essenciais para a gestão de segurança em OIEs, embora algumas características desse tipo institucional, especialmente o sigilo, tendam a ter efeito deletério sobre esses objetivos. Essa proposta foi abordada por meio de revisão da literatura especializada e da análise das interações paradigmáticas entre os estudos sobre: confiança e desconfiança; gestão de segurança e de segurança da informação; e Atividade de Inteligência. Identificou-se que
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A confiança como requisito para a gestão de segurança em organizações de Inteligência de Estado
as características das OIEs podem dificultar a promoção da confiança, ao mesmo tempo em que favoreceriam a implementação de medidas de controle e de conscientização em segurança, ambos em decorrência da centralidade do sigilo na dinâmica institucional. Por fim, são apresentadas medidas identificadas na literatura que objetivam modernizar a gestão de segurança a partir do fortalecimento da confiança intraorganizacional.
Confiança e confiabilidade
A confiança, independente de outras considerações, é um estado psicológico. Aquele que confia expõe-se àquele em quem se confia, sujeita-se aos riscos de depender de outrem, cujas intenções e motivações não são inteiramente conhecidas, de modo a reduzir a complexidade das relações humanas. A decisão de confiar está atrelada, portanto, a um conjunto de elementos que ultrapassam a racionalidade estrita e podem incluir percepções culturais, reações emocionais, relações sociais, entre outros. Em suma, uma pessoa “não apenas pensa confiança, mas sente confiança” (FINE e HOLYFIELD, 1996, p. 25 apud KRAMER, 1999, p. 572).
Na prática, a confiança manifesta-se todas as vezes em que umindivíduo depende de outro, por sentir-se incapaz ou por conveniência. Por isso, trata-se a confiança como uma escolha, uma decisão, que é estudada a partir de duas abordagens principais. A “confiança como escolha racional” provém das ciências sociais, econômica e política, e está centrada na noção de que a decisão de confiar é calculada, visa maximizar ganhos e minimizar perdas esperadas (KRAMER,
1999, p. 572). O indivíduo confia quando considera que o outro será capaz de satisfazer seus interesses melhor do que ele próprio, porque o outro tem mais competência ou porque julga arriscado ou excessivamente custoso realizar ele mesmo as ações de seu interesse.
Em que pese seu valor preditivo para comportamentos “ideais”, o modelo racional carece de instrumentos que expliquem por que razão as pessoas decidem confiar em outras que seriam, sob melhor juízo, inconfiáveis. Para suprir essa lacuna, foram desenvolvidos os chamados “modelos relacionais de confiança”, que incorporam os elementos sociais e relacionais, inclusive em suas dimensões cognitiva, motivacional e afetiva, como antecedentes da decisão de confiar. Mais do que um cálculo objetivo de risco, a confiança, nessa abordagem, é “uma orientação social em relação a outras pessoas e à sociedade como um todo” (KRAMER, 1999, p. 573).
Möllering (2006, p. 105) defende que resumir a confiança a uma dessas duas abordagens afetaria a capacidade explicativa única do construto e, por isso, seria mais coerente contextualizar a influência dos cálculos racionais, dos estímulos sociais e, também, da “reflexividade”, o impacto da percepção de sucesso/fracasso da confiança depositada em outrem, sobre a disposição para confiar. Trata-se de reconhecer que a confiança se estabelece em um contexto de risco para quem confia e que é do interesse individual mitigar esse risco e reduzir a insegurança. A confiança é, portanto, “a disposição de uma parte a estar vulnerável às ações de outra, baseada na expectativa de que o outro vai realizar uma ação específica importante para
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quem confia, independente de sua habilidade para monitorar ou controlar aquela outra parte” (MAYER et. al., 1995, p. 712).
De modo a operacionalizar essa concepção, Hardin (1992, p. 152-154) propõe que a confiança depende da relação estabelecida entre um confiante (truster), um confiado (trusted) e o contexto/domínio específico em que a confiança é conferida. Logo, a confiança está condicionada tanto por elementos pessoais e psicológicos que condicionam a disposição em confiar (atrelados ao ambiente familiar, a aspectos socioculturais e a características de personalidade) como por fatores construídos relacional e historicamente.
Naturalmente, é preciso reconhecer que a decisão de confiar não ocorre no vácuo, que os indivíduos baseiam essa escolha em um julgamento, com vistas a determinar a “confiabilidade” de outro. Três atributos pessoais são centrais para essa avaliação: a capacidade, o conjunto de habilidades, conhecimentos e características do confiado que viabilizam sua influência sobre determinado domínio; a benevolência, o quanto se acredita que o confiado quer o bem do confiante; e a integridade, a percepção de que o confiado adere a um conjunto de princípios e valores que o confiante julga aceitáveis (MAYER et. al., 1995, p. 717-719). Essas expectativas sobre a confiabilidade são validadas ou refutadas pelas repetidas interações entre as partes, o que induz sucessivas readequações do modelo mental (KRAMER, 1999, p. 576).
Interagir é, portanto, requisito essencial para relações de confiança duradouras. Seria inimaginável, no entanto, considerar que
todas as partes de uma organização complexa lograriam relacionar-se com frequência e profundidade suficientes para viabilizar uma avaliação criteriosa de confiabilidade. Entre empregado e empregador, há gestores, gerentes, supervisores, colegas; e, nesse contexto, percepções são muitas vezes “emprestadas”, ora na forma de avaliações de desempenho, ora como “fofoca”. Nesse sentido, Burt e Knez (1996, p. 83) destacam que as informações obtidas de terceiros/ intermediários tendem a refletir apenas uma porção da dinâmica intraorganizacional, geralmente enviesada de acordo com as expectativas do emissor a respeito do que interessa ao receptor. Em outras palavras, se um gestor sabidamente não confia em um servidor, é provável que o supervisor imediato deste apresente àquele informações que confirmem a baixa confiabilidade do subordinado, reforçando a avaliação do superior.
Aconfiabilidade, por fim, também é atribuída nas relações baseadas em identificação de grupo, inclusive funcional. Omembro de um grupo - de uma categoria profissional ou o servidor ocupante de um cargo - é percebido como parte de um ethos específico, sujeito a regras formais e informais de conduta e a modelos mentais compartilhados. A sua confiabilidade é, portanto, parcialmente despersonalizada, decorre da expectativa de que aquela pessoa possui as competências necessárias para pertencer àquele grupo e está disposta a cumprir as obrigações relacionais e organizacionais esperadas dela, quaisquer que sejam.
Benefícios da confiança intraorganizacional
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A crença de que todos na organização compartilham o mesmo entendimento a respeito do contexto vivenciado e do comportamento esperado de cada um motiva as instituições a confiar, a estabelecer regras formais ou informais, de modo que cada parte do sistema comprometa-se com um processo de socialização baseado na aderência aos princípios, valores e normas que regem a organização. Busca-se, assim, fomentar o engajamento, facilitar os processos de trabalho e difundir a cultura organizacional.
Esse processo adquire características específicas quando se trata de organizações públicas, que são governadas por forças políticas, tem objetivos diversos e relativamente vagos, e são expostas a princípios de controle finalístico decorrentes da delegação de poderes (MEIER e KRAUSE, 2003, p. 13). Para cumprir suas missões, o setor público costuma organizar- se de acordo com a concepção weberiana, baseada na “autoridade racional-legal”, que envolve divisão do trabalho, pessoal de carreira com treinamento especializado e expertise, estruturas organizacionais formais e hierárquicas que não replicam outras unidades administrativas da instituição, bem como regras e procedimentos que garantam clareza de autoridade e responsabilidade. Como esse modelo é voltado para situações de estabilidade, é também afrontado pela dinamicidade do mundo contemporâneo, razão pela qual o setor público busca soluções no setor privado, a exemplo da incorporação de técnicas e melhores práticas de gestão (KHAN e KHANDAKER, 2016, p.2875).
Outra característica de organizações públicas
é a prevalência da dinâmica principal-agente na gestão institucional. Nesse paradigma, o principal considera firmar contrato com o agente, sob a expectativa de que este fará escolhas que produzirão os resultados desejados por aquele. Como o agente também tem os seus próprios interesses, repousará sobre a estrutura do contrato entre as partes tornar vantajosa a compatibilização de seus interesses. Mesmo assim, haverá, sempre, assimetrias de informação, e o principal precisará delegar atribuições ao agente sem ter conhecimento completo e/ou preciso de suas ações e intenções (MEIER E KRAUSE, 2003, p. 8).
Quando observamos as OIEs, os efeitos dessas problemáticas tendem a ser exponencializados, em decorrência de sua característica mais marcante: o sigilo. Em ambientes construídos a partir de protocolos de produção e proteção de conhecimentos, cujo descumprimento pode resultar em prejuízos de imagem, vazamento de informações, morte, entre outros, o modelo weberiano tende a ser praticado enfaticamente e a relação principal-agente tende a atingir níveis mais elevados, e potencialmente danosos, de assimetria de informação. Isso afeta gravemente a “aversão à traição” (betrayal aversion) por parte dos principais, a noção de que os confiantes receiam confiar por sofrer duas perdas de utilidade quando a interação principal-agente falha: o insucesso e a percepção de que a confiança foi traída, violada (BOHNET et al., 2008, p.296).
O desempenho organizacional, nesse contexto, é facilitado pelo estabelecimento de relações de confiança, com três efeitos positivos de maior destaque. Primeiro, o
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nível de confiança influencia os custos de transação dentro da organização, reduzindo a necessidade de repetidas negociações individuais que estabeleçam credibilidade e mecanismos de controle entre os membros da instituição (KRAMER, 1999, p. 582). A confiança também favorece a sociabilidade espontânea entre os servidores, a sua disposição a realizar ações cooperativas, altruísticas e que excedam seu rol de atribuições, sem esperar recompensa além da melhoria das condições coletivas de bem-estar (FUKUYAMA, 1995, p. 27). Esse é um dos objetivos clássicos dos modelos de gestão e influencia a resiliência organizacional, a capacidade para resistir a períodos de instabilidade e aprimorar processos de modo a fortalecer-se internamente a médio prazo.
Enfim, a confiança impacta como os indivíduos se relacionam em estruturas hierárquicas, especialmente aquelas de matriz weberiana, a exemplo das OIEs. Para aqueles em posição de liderança, é impraticável explicar e justificar cada uma de suas decisões a cada um dos colaboradores, assim como é inviável monitorar cada indivíduo, punir cada conduta desviante e premiar cada ação positiva. A confiança intraorganizacional é, assim, fundamental para que os servidores reconheçam que são tratados de forma justa e imparcial, principalmente quando afrontados com situações em que eles estejam investidos emocionalmente, como promoções, reestruturações, investigações internas e demissões.
Óbices ao estabelecimento da confiança intraorganizacional
Embora pareça óbvio e desejável que as organizações possuam níveis adequados de confiança interna, o baixo índice de engajamento de trabalhadores nos EUA e no Brasil, apresentados anteriormente, indicam que há descompasso entre o discurso contemporâneo sobre gestão organizacional e a realidade percebida por mais de dois terços da força de trabalho. Odesafio talvez seja o fato de que - assim como o ar que respiramos - “a confiança é, na maioria das vezes, ‘transparente’, e não se permite perceber verdadeiramente até que ela seja posta em perigo: é quando a confiança é violada que ela parece, subitamente, ser indispensável” (VAN BELLEGHEM, 2003, p. 53). Nesse sentido, Kramer (1999, p. 587- 594) destaca quatro fatores que atuam como óbices ao desenvolvimento da confiança: a fragilidade inerente à confiança; a quebra do contrato psicológico; as novas tecnologias; e a dinâmica de suspeição e desconfiança.
Como dito acima, a confiança depende de interações continuadas e positivas. Rupturas na sua frequência ou qualidade acarretam óbices ao desenvolvimento da confiança e favorecem a formação de um círculo vicioso, em que a pouca confiança desestimula a relação entre as partes, reduzindo as possibilidades de interações positivas e contribuindo para que a pouca confiança, ou até mesmo a desconfiança, consolide- se prematura e/ou equivocadamente (KRAMER, 1999, p. 593). Por isso, considera-se que é mais fácil destruir do que construir confiança.
Com efeito, a construção de confiança é promovida quando os processos decisórios são transparentes e fragilizada quando são opacos. Se um processo (orçamentário,
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seletivo etc.) é percebido como logicamente compatível com a estratégia organizacional, torna-se legítimo para os servidores, mesmo que não lhes seja favorável. Em sentido contrário, a desconexão estratégica incentiva interpretações de favoritismo, injustiça, descompromisso da alta gestão, entre outros, e mina a confiança (KIM e MAUBORGNE, 2003).
Em OIEs, a reduzida visibilidade externa e o alto risco envolvido na atividade tendem a aprofundar a importância das relações de confiança, ao mesmo tempo em que parece mantê-las em um estado de fragilidade quase permanente. Isso porque, para cumprir uma de suas missões (manter e proteger o sigilo sobre as informações, as demandas e os métodos da atividade), a lógica que rege o processo de segurança das OIEs tende a ser proteger o máximo possível e revelar o mínimo estritamente necessário. Por meio de medidas de controle como a classificação, o acesso e a necessidade de conhecer, o sigilo tanto viabiliza a missão institucional das OIEs como inibe as interações sociais e profissionais que estruturam as relações de confiança.
A segunda barreira ao estabelecimento de ambientes de confiança é a quebra do contrato psicológico, o conjunto de promessas realizadas por empregado e empregador, que se comprometem a cumprir os termos pactuados explicitamente ou interpretados a partir do convívio. Como as promessas estipuladas de parte a parte estão sujeitas ao entendimento, à percepção e à interpretação, é comum a ocorrência de desentendimentos. Seja porque uma promoção não foi dada a um servidor competente ou porque o desempenho da
equipe é considerado insuficiente pelo gestor, violações do contrato básico de expectativas tendem a enfraquecer a confiança e a prejudicar o relacionamento. Essas tensões e quebras do contrato psicológico são associadas à reduzida performance dos trabalhadores, ao baixo nível de iniciativa e comprometimento e às intenções de saída da organização.
No caso das OIEs, o modo como o contrato psicológico é estabelecido tende a variar significativamente, de acordo com o país, sua história e seu contexto. Acredita-se, em geral, que os indivíduos que almejam integrar OIEs tendem a apresentar características pessoais favoráveis ao desenvolvimento de confiança no âmbito do contrato psicológico, a exemplo do sentido de propósito, geralmente externado na forma de patriotismo, e da dedicação altruística em favor de objetivos institucionais e nacionais (HERMAN, 2006, p. 324-326). Porém, em decorrência do imperativo do sigilo e da consequente necessidade de altos padrões de segurança e excelência como alicerces da confiabilidade em situações de risco, a eventual fragilização do contrato psicológico em OIEs tende a ser desastrosa, motivando questionamentos a respeito da segurança e do bem-estar individuais e podendo acarretar descompromisso com os princípios institucionais.
Por sua vez, as novas tecnologias, principalmente aquelas que visam remediar desafios de segurança, como ferramentas de monitoramento e auditoria, geram efeitos contraditórios. Tentam solucionar o desafio de confiabilidade interna, garantindo o respeito às normas e expectativas organizacionais e, ao mesmo tempo,
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impactam a percepção que os servidores têm do modo como a organização os vê – do quanto são confiáveis –, reduzindo os incentivos sociais ao comportamento adequado e, potencialmente, gerando ressentimento. Em OIEs, a relação com as novas tecnologias talvez seja, excepcionalmente, melhor do que nas demais organizações, em decorrência das expectativas inerentes ao trabalho em Inteligência e à sua tendência a aproveitar rapidamente os avanços tecnológicos que fomentam a segurança. Como consequência do sigilo, o controle é esperado, ainda que por vezes possa ser considerado incômodo.
Enfim, a suspeição e a desconfiança estão interligadas e combinam-se para minar a possibilidade de construção da confiança. Fein e Hilton (1994, p. 168, apud KRAMER, 1999, p. 587) definem suspeição como um estado psicológico em que o indivíduo ativamente considera múltiplas, potencialmente antagônicas, hipóteses a respeito dos motivos ou do comportamento de outrem. A suspeição afeta o modo como o indivíduo calcula a confiabilidade alheia, tornando-o mais cuidadoso ao avaliar as motivações potenciais do outro. A depender do contexto, a pessoa pode ser alvo de suspeição sem sequer ter se comportado de forma inadequada no ambiente de trabalho, bastando para a suspeita que tenha havido algum fato, inclusive na esfera pessoal, que contrarie as crenças cognitivas, morais, éticas ou mesmo culturais de quem a está avaliando.
A desconfiança, por sua vez, representa desafio peculiar, pois é menos compreendida racionalmente do que a confiança e, a contrario sensu, não é seu antípoda. Quando
pensamos essas duas categorias, tendemos a imaginar um contínuo, que se inicia no estado “perfeito” de confiança e se encerra no estado “imperfeito” de desconfiança. Não obstante, somos plenamente capazes de confiar pontualmente em alguém de quem desconfiamos usualmente. Para tanto, dependemos, tão somente, de um contexto favorável ou inescapável. As interações entre OIEs são exemplo desse tipo de coexistência entre a confiança e a desconfiança; embora antagonistas no ambiente concorrencial que define as relações internacionais, esses órgãos logram compartilhar informações específicas a respeito de temas de interesse mútuo.
Na desconfiança em estado absoluto, o estado da mente que prevalece não só não confia, mas também promove, ativa e reiteradamente, o desconfiar. Se é mais fácil destruir a confiança do que construí-la, é mais fácil construir a desconfiança do que destruí-la. Pior, a construção de uma não resulta, necessariamente, na destruição da outra (VAN DE WALLE e SIX, 2013, p. 3). Em decorrência dessa coexistência, e na ausência de opção viável na literatura, define- se a desconfiança a partir do conceito de Mayer para a confiança, visto anteriormente, evitando os antagonismos que poderiam equalizá-la com a não-confiança. Considera- se, assim, que um indivíduo desconfia quando tem uma disposição a não estar vulnerável às ações de outra pessoa, porque acredita que ela seria incapaz de realizar uma ação específica que lhe importa, a menos que esteja plenamente habilitado para monitorar e/ou controlar sua atuação.
Para a gestão de uma OIE, a desconfiança pode ser especialmente destrutiva. Com
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efeito, ela inviabiliza as ações básicas da instituição, pois afeta a disposição em assumir riscos, cumprir missões a partir de informações compartimentadas e atuar em conjunto com pessoas ou equipes pouco conhecidas. Mais ainda, a desconfiança tende a impactar a incorporação da visão estratégica da instituição pelos servidores, pois indivíduos em estado de desconfiança tendem a desconfiar mesmo das boas intenções de mudança. Por isso, considera- se que a mitigação da desconfiança exige estratégias de longo prazo e consistência organizacional quanto às iniciativas de construção e manutenção de confiança (VAN DE WALLE & SIX, 2013, p. 22).
Interessantemente, alguns autores têm propagado a ideia de que existiriam níveis legítimos de desconfiança, cuja mitigação dependeria de controle e dissuasão (VAN DE WALLE & SIX, 2013, p. 12). Novamente, as OIEs ilustram o fenômeno, uma vez que a preservação do sigilo impõe uma série de constrangimentos e exige mecanismos de monitoramento e controle, considerados não só coerentes com a missão desse tipo institucional, mas também necessários para a proteção individual dos servidores e a consecução dos objetivos organizacionais.
Medidas de promoção da confiança e de mitigação da desconfiança na gestão de segurança em OIEs
A segurança em OIEs consiste em medidas defensivas espelhadas em técnicas ofensivas de Inteligência, como as coletas de Inteligência Humana (HUMINT) e Inteligência Cibernética. A fim de combatê-
las, adotam-se medidas de segurança humana, física, de documentação e de redes e sistemas, a exemplo da investigação pessoal, do controle de viagens ao exterior e de contatos com estrangeiros, da restrição ao acesso físico a áreas e instalações e lógico a redes e sistemas e de regras para a classificação, custódia e transmissão de documentos. Tudo isso sublinhado pelo sigilo e pelo princípio da necessidade de conhecer (HERMAN, 2006, p. 167).
O desafio que aqui se propõe está situado, contudo, em um momento anterior à definição de normas e práticas de segurança. Em verdade, trata-se do que é “gestão de segurança”. Usulmente, associa-se à palavra “gestão” noções como liderança, transparência, participação, autonomia e necessidade de compartilhar (need to share) . “Segurança”, por outro lado, é atrelada a controle, regras, risco, burocracia, incômodo, e necessidade de conhecer (need to know) . De outro modo, percebe-se que a gestão mantém alinhamento conceitual com a confiança, enquanto a segurança tende a ser associada com os elementos de suspeição e de desconfiança.
Como, então, avançar de um estado em que, muitas vezes, as organizações acabam “gerindo desconfiança” para outro, em que elas promovem a confiança de forma segura? A resposta para essa questão envolve o papel desempenhado pelos três elementos-chave da gestão de segurança (a política de segurança, os líderes e gestores, e os servidores) na promoção da confiança e na mitigação da desconfiança intraorganizacional.
As políticas de segurança são compostas por
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princípios e normas que orientam as atitudes e o comportamento dos trabalhadores e estipulam sanções para eventuais violações. Essa lógica de “obedeça ou sofra as consequências” indica que os servidores são vistos, a priori, com desconfiança, como potenciais causadores de danos institucionais e como a principal vulnerabilidade na cadeia de componentes da segurança. Não à toa, popularizou-se a imagem do indivíduo como elo mais fraco de uma “corrente” da segurança organizacional.
Flechais et. al. (2005, p. 37), no entanto, destacam que as pessoas não quebram relações de confiança de maneira automática e insensível. Se, por exemplo, um servidor é credenciado a acessar documentos estratégicos e sigilosos, ele tenderá a sentir que a organização confia nele, porque incumbiu-lhe um ativo institucional valioso. Internamente, será difícil violar essa relação, a menos que o indivíduo identifique outros elementos que justifiquem o desrespeito à confiança nele depositada, geralmente associados à percepção de injustiça, insegurança e incoerência institucional. Para fazer frente a esses desafios psicológicos, é recomendável que as políticas de segurança vinculem normas e contramedidas à proteção de ativos institucionais, inclusive os servidores, em vez de enfocarem a conformidade comportamental por meio de sanções. Em outras palavras, tende a ser mais efetivo informar que o uso de crachás é mandatório porque visa à identificação oportuna, pela equipe de monitoração em vídeo, de indivíduos estranhos e potencialmente perigosos, do que simplesmente estabelecer que o uso do crachá é mandatório e a desobediência à norma resultará em suspensão.
Outro ponto destacado é que as normas de segurança costumeiramente demandam que os trabalhadores incorporem comportamentos que podem ser interpretados como evidências de desconfiança em relação a colegas de trabalho, a exemplo de não compartilhar senhas de sistemas e bancos de dados. Em alguns casos, esses mecanismos favorecem a criação de estruturas ad hoc de segurança no nível produtivo, que contornam ou subvertem as regras estabelecidas em favor de ganhos produtivos supostamente maiores, socialmente convenientes e organizacionalmente mais arriscados (KIRLAPPOS & SASSE, 2015, p. 1). Um grupo de servidores poderá, nesse sentido, compartilhar a senha de acesso individual a um banco de dados de modo a evitar o preenchimento de formulários de cadastramento extensos.
As pessoas, porém, não são apenas as principais causas de preocupação para a gestão de segurança; são também a primeira linha de defesa e a principal forma de prevenção, detecção e solução de problemas. Afinal, são elas que desenham, implementam, operam e utilizam os sistemas. Mais ainda, como dito acima, os servidores tendem a considerar legítimas certas formas de controle, desde que sensíveis ao desejo dos indivíduos de serem reconhecidos como confiáveis e coerentes com a missão institucional.
Considera-se positivo, portanto, que a gestão de segurança esteja alinhada com os objetivos estratégicos da organização. Para tanto, gestores e líderes têm papel fundamental. Estudos realizados no setor privado indicam que esses atores
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institucionais influenciam em até 70% os índices de engajamento e confiança dos trabalhadores e atuam como modelos de alta visibilidade, a partir dos quais os empregados chegam a inferências genéricas a respeito da confiança institucional (KRAMER, 1999, p. 592; HARTER e ADKINS, 2015).
A construção de confiança inicia-se, assim, pela seleção e pelo treinamento de líderes e gestores, a fim de que atuem, prioritariamente, como catalisadores, facilitadores e coaches , e apenas secundariamente como figuras de autoridade. Nesse ponto, estudos sobre liderança e gestão informam que a tendência das organizações de promover servidores a cargos de gestão com base em tempo de serviço ou em desempenho técnico em funções operacionais, em vez de talento, treinamento e competência, não traz resultados ótimos (BECK & HARTER, 2015). Em OIEs, esperar que a “nata” se destaque naturalmente pode ser arriscado, pois tende a favorecer o sucesso a curto prazo, muitas vezes desconsiderando o “fator sorte” e a consistência funcional - inclusive o compromisso com a segurança - ao longo da carreira (HATFIELD, 2008, p. 15).
Líderes e gestores mal selecionados e treinados precariamente acabariam por favorecer o que Galford e Drapeau (2013) chamam de “inimigos da confiança”. Esse tipo de gestor diz o que as pessoas querem ouvir, esperando com isso obter maior engajamento, ao invés de dizer o que elas precisam ouvir; ignora que os empregados monitoram todas as suas ações e que se eles acreditarem haver algum favoritismo, reduzirão seu nível de confiança; despreocupa-se com a
incompetência, “porque não faz mal a ninguém” e desconsidera o impacto que isso gera sobre a equipe; fornece feedback inconsistente com o desempenho - ou nem fornece - muitas vezes para evitar conflito; não confia nos servidores e impede o seu crescimento por meio da realização de tarefas complexas e inéditas; evita discutir os “elefantes na sala”, os problemas e desafios que exigem comprometimento e podem causar desconforto entre alguns servidores, se tratados devidamente; e, para completar, permite que rumores circulem livremente, ao invés de abordar claramente as questões que preocupam a equipe.
Uma vez abordadas as medidas mais genéricas de fomento à confiança e mitigação da desconfiança, passa-se do nível individual (líder/gestor/servidor) para a “cultura de segurança”, o conjunto de premissas compartilhadas e ativamente difundidas entre os membros da organização sobre segurança. Nesse aspecto, a literatura especializada registra seis grupos de medidas pró-confiança que podem ser adaptados à gestão de segurança em OIEs e são abordados a seguir (FLECHAIS et. al, 2005; BINIKOS, 2008; LACEY, 2009; KIRLAPPOS & SASSE, 2015).
Primeiro, recomenda-se simplificar a segurança , facilitar a observância de seus preceitos por meio de ferramentas e normas bem elaboradas, com especial atenção à redução de exceções normativas, que costumam acarretar confusão e abuso. Kirlappos e Sasse (2015, p. 7) chamam de “higiene de segurança” (security hygiene) a noção de que as regras devem ser desenvolvidas ao redor dos processos de produção, de modo a reduzir a necessidade de violação da segurança por
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razões de produtividade. Com isso, ataca- se a noção de que a urgência justifica a má conduta e incute-se entre os gestores de segurança a ideia de que seus sistemas devem ser de simples aplicação e compreensivos, sob pena de serem somente incômodos e dispendiosos.
A partir de normas e procedimentos simples e compreensivos é possível promover uma cultura legítima de segurança, que não seja punitiva, nem injusta ou seletiva. Com efeito, busca-se desenvolver processos transparentes de gestão de segurança, inclusive de punição, que priorizem a proteção dos ativos e da missão institucional e favoreçam o diálogo interno. Nesse sentido, é salutar que os servidores sejam convidados a participar da segurança, inclusive da elaboração de normas, o que tende a facilitar o engajamento laboral e a incentivar o desenvolvimento de um senso de propriedade e pertencimento (ownership) sobre o futuro da organização.
Na mesma direção, considera-se relevante promover a identidade de grupo, incentivar os servidores a reconhecerem-se como membros de uma instituição cujas peculiaridades implicam em exigências diferenciadas de trabalho. Diversas medidas podem ser adotadas nesse sentido, como a inclusão dos trabalhadores em “grupos de segurança”, com atribuições e sistema de recompensas próprios que tendem a tornar essa atividade parte de seu negócio. Infelizmente, para a maior parte deles, cumprir preceitos de segurança e comportar- se de forma segura não constituem atividades fundamentais que levariam a resultados de trabalho; não compõem suas avaliações de desempenho e raramente são
recompensados pelo bom comportamento.
Todas essas propostas seriam inócuas caso a instituição falhe em promover a educação em segurança, oferecer treinamento em relação ao que é esperado dos servidores e quais são as ameaças identificadas pela organização. É recomendado que a organização sinalize aos servidores que eles têm a sua confiança - que as questões de segurança são parte do negócio da organização, não questões pessoais - e divulgue informações a respeito de ameaças identificadas pela instituição. Passa-se, assim, de uma abordagem puramente centrada em normas e sanções para outra guiada por riscos e objetivos organizacionais, o que amplia o foco de atenção e responsabilidade dos servidores, extrapolando o mundo físico para incluir, também, as ameaças ao sucesso organizacional e ao seu bem-estar profissional.
Por outro lado, é recomendável evitar campanhas mal desenhadas, principalmente aquelas que ocorrem logo após incidentes de segurança graves. Embora a inspiração tenha efeitos mais poderosos e duradouros do que o exercício da autoridade, muitas culturas de segurança são determinadas pela reação da alta direção a grandes incidentes, os quais são, além de danosos, embaraçosos e politicamente nefastos (LACEY, 2009, p. 8). A lógica de “cabeças vão rolar”, no entanto, raramente aborda as causas profundas dos incidentes de segurança e pode, em verdade, prejudicar a confiança e a produtividade organizacionais, pois o servidor que trabalha com mais afinco, dinamicidade e empoderamento tende a ser mais vulnerável a cometer erros do que aquele que simplesmente obedece ordens.
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Quando as medidas inclusivas e preventivas falham, a promoção da confiança e a mitigação da desconfiança dependem de medidas que visam assegurar a segurança . Servidores conscientes trabalhando em ambientes com sistemas efetivos de segurança não têm razão para violar as normas institucionais, a menos que o façam por descaso ou má fé. Por isso é recomendável que ações maliciosas ou que não foram relatadas oportunamente tenham consequências graves e visíveis para o grupo de servidores, de modo a desencorajar comportamentos desviantes no futuro e a incentivar e motivar os servidores que respeitam os preceitos de segurança. Reforça-se, assim, a noção de que a confiabilidade, a responsabilidade e o comprometimento são valorizados pela instituição (KIRLAPPOS e SASSE, 2015, p. 7-8).
Por fim, a evolução de qualquer sistema baseado em confiança estará condicionada à capacidade organizacional de apoiar a comunicação de incidentes de segurança. Quando a organização opta por agir contra quem informa incidentes, não apenas vitimiza o empregado como perde a oportunidade de corrigir desvios e fomentar a confiança. Isso é ainda mais relevante nos casos em que a decisão de informar/denunciar está fora das atribuições regulares do indivíduo, que precisaria buscar em seu senso de ética e de justiça a motivação para relatar incidentes e expor-se ao crivo da organização e de colegas. Por isso é recomendado que a instituição viabilize os meios para que o servidor confie a ela esse tipo de informação, desde um canal apropriado e seguro de comunicação até a percepção, a crença, de que as práticas organizacionais excluem da
normalidade as atitudes ilegais, ilegítimas e/ ou antiéticas (BINIKOS, 2008, p. 58).
Considerações finais
Como visto, as OIEs podem beneficiar-se da promoção da confiança e da mitigação da desconfiança, em termos gerais e no âmbito da sua gestão de segurança. Esse esforço, contudo, depende de iniciativas institucionais que desvinculem o sigilo de eventuais práticas secretistas que suprimam o diálogo interno e do fortalecimento da comunicação de segurança. Fomentar-se-ia, assim, a transparência na atuação da alta gestão, a clareza de objetivos por parte dos gestores e o senso de responsabilidade por parte dos servidores. No mesmo sentido, líderes e gestores tendem a desempenhar melhor suas funções quando são selecionados com base em seu comprometimento com os valores organizacionais - entre os quais se encontra a segurança - e treinados de modo a se tornarem promotores de relações profissionais, com os servidores e entre os servidores, conducentes com o estabelecimento de um ambiente de trabalho pautado pela excelência, pelo respeito à política de segurança e pela gestão embasada em confiança.
A estruturação de políticas de segurança baseadas em confiança, a seleção e o treinamento adequado de líderes e gestores, a inclusão participativa e o empoderamento dos servidores na gestão da segurança tendem a tornar instituições como as OIEs mais resilientes. À medida que os agentes adversos tornam-se mais criativos e imprevisíveis, um corpo funcional adepto de preceitos de segurança e motivado a proteger sua instituição tende a suspeitar
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de ações estranhas, adotar comportamentos seguros e consultar os gestores de segurança a respeito de situações imprevistas. Reconhece-se que eliminar completamente os incidentes de segurança é inviável, porém reputa-se plenamente cabível aspirar que eles ocorram com menos frequência e que sejam
informados e tratados oportunamente. Para isso, considera-se essencial deixar de entender a confiança intraorganizacional como sintoma de saúde institucional e passar a observá-la como uma de suas principais causas.
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NOTAS PARA UMAGEOPOLÍTICA AMBIENTAL: NARRATIVAS TRANSTERRITORIAIS E O APARATO DE INTELIGÊNCIA PARA A AMAZÔNIA.
Rodrigo Augusto Lima de Medeiros *
Resumo
Este artigo propõe refletir sobre uma geopolítica ambiental amazônica por meio da análise de narrativas burocráticas que servem ao propósito de um governo estratégico do espaço amazônico. As relações entre política (processos enunciativos de governo) e território (simbolização do espaço) definem concepções para a Amazônia. Assim, analisar de que modo concepções geopolíticas fundamentam práticas ambientais para a Amazônia brasileira é o propósito deste artigo. Tanto a intelligentsia administrativa brasileira quanto think tanks estadunidenses procuram estabelecer práticas territoriais para a Amazônia, fundamentando estratégicas de comércio e desenvolvimento para o Brasil, em geral, e para a Amazônia, em particular. Há uma forte matriz militar nas reflexões/ações das burocracias especializadas tanto no Brasil quanto nos EUA que projetam modelos hegemônicos de desenvolvimento. Por um lado, observamos que a intelligentsia administrativa brasileira procura integrar territorialmente a região amazônica ao centro dinâmico da economia nacional, subordinando essa integração a concepções de segurança nacional. Por outro lado, think tanks estadunidenses concebem a Amazônica como sendo um armazém de recursos naturais subordinado a interesses comerciais e industriais de seu complexo produtivo civil-militar. Concluímos que os receituários institucionais estabelecem regimes práticos que criam territórios com base na soberania de um ordenamento político-institucional, dando a dimensão de um estado de guerra permanente por narrativas que legitimem planos para a Amazônia.
Palavras-chaves: Geopolítica Ambiental. Amazônia. Burocracia.
NOTES FOR ENVIRONMENTAL GEOPOLITICS: TRANSNATIONAL NARRATIVE AND THE INTELLIGENCE APPARATUS FOR THE AMAZON REGION.
Abstract
The objective of this article is to reflect on environmental geopolitics. Some bureaucratic narratives provide argumentative elements to elaborate governmental actions to the Amazon region. In this sense, conceptions of an Amazon are made through the relationship between policy (a set of ideas or a plan) and territory (embodiment of space). Thus, this article aims at analysing the way geopolitical conceptions can impact environmental practices in the Brazilian Amazon. Both the Brazilian administrative intelligentsia and North American think tanks seek to establish territorial practices for the Amazon, grounding trade strategies. Specialized offices in Brazil and the United States work with a military framework in the reflections and actions for the Amazon, which project hegemonic models of development. The Brazilian administrative intelligentsia seeks to territorially integrate the Amazon region into the dynamic centre of the
* Doutor, mestre e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília. Sua tese de doutorado foi premiada no V Concurso de Tese do Ministério da Defesa. Possui experiências profissionais em docência, serviço público, instituições multilaterais e licenciamento ambiental. É professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e Especialista em Política Ambiental do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Artigo recebido em julho/2018
Aprovado em setembro/2018
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national economy, subordinating this integration to a national security conception. In turn, US think tanks comprehend the Amazon as a natural resource warehouse, which can be subordinated to their civil and military industrial complex. Therefore, the paper comes to the conclusion that institutional prescriptions establish pragmatic actions which build up an unlike kind of territorialities through different institutional narratives.
Keywords: Environmental Geopolitics. Amazon. Bureaucracy.
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Notas para uma geopolítica ambiental: narrativas transterritoriais e o aparato de Inteligência para a Amazônia
Introdução: uma geopolítica marcada no planejamento estatal
O objetivo deste artigo é analisar de que modo concepções geopolíticas fundamentam práticas ambientais para a Amazônia brasileira. Em outro trabalho (MEDEIROS, 2018), traçamos genealogias de concepções geopolíticas tanto de uma intelligentsia administrativa brasileira quanto de think tanks estadunidenses. Ambos procuram estabelecer práticas territoriais para a Amazônia, fundamentando estratégias de comércio e desenvolvimento para o Brasil, em geral, e para a Amazônia, em particular. Há uma forte matriz militar nas reflexões/ ações das burocracias especializadas tanto no Brasil quanto nos EUA que projetam um modelo hegemônico de desenvolvimento. Observa-se que a intelligentsia administrativa procura integrar territorialmente a região amazônica ao centro dinâmico da economia nacional, subordinando essa integração a concepções de segurança nacional. Por sua vez, think tanks estadunidenses concebem a Amazônia como sendo um armazém de matérias-primas subordinado aos interesses comerciais e industriais.
Não cabe aqui realizar levantamento teórico-metodológico de categorias analíticas da geografia política, tampouco formular discussão crítica sobre a vertente “determinista” da geopolítica de Friedrich Ratzel (1988) ou sobre a vertente “possibilista” vinculada a Paul Vidal de
La Blache (1954). As preocupações deste artigo não se vinculam exclusivamente aos questionamentos da geopolítica em si, mas, principalmente, de que modo a geopolítica é utilizada na elaboração de construtos técnico-burocráticos, ou melhor, de que modo as narrativas geopolíticas se tornam pressupostos que constroem projetos político- territoriais para a Amazônia. Na argumentação deste artigo, esses pressupostos são entendimentos de senso comum que flertam com concepções desenvolvimentistas e ambientalistas, mas que não verticalizam nas compreensões (MEDEIROS, 2018). Assim, os projetos político-territoriais são narrativas geopolíticas em torno de práticas burocráticas que servem ao propósito de um governo estratégico da natureza. As relações entre política – processos enunciados de governo (FOUCAULT, 2005) – e território – simbolização do espaço (MASSEY, 2008). 1
– definem as políticas estratégicas para a Amazônia.
Em síntese, para Bertha Becker, geopolítico é o “campo de conhecimento que analisa relações entre poder e espaço” (2005, p. 71). O Estado é o principal ator geopolítico na medida em que possui o legítimo monopólio da violência física (WEBER, 2004). O Estado impõe a soberania de seu ordenamento jurídico-institucional dentro de seu território, podendo, pretensiosamente, impor suas concepções territoriais para outros Estados, em condições assimétricas de negociações. Entretanto, o Estado não é o único ator no jogo
1 De acordo com Massey (2008, p. 212), espaço é “como a esfera de relações, da multiplicidade contemporânea e, como sempre, em construção”. Na esteira das discussões de Latour (2005) sobre agentes humanos e não humanos, Massey procura um conceito de espaço relacional no qual agrega as noções de que há atores naturais (não sociais), por exemplo, aspectos biofísicos, que também inventam lugares em interação com atores sociais. É nesse conceito de espaço em que me apoio. Para uma discussão detalhada sobre a história da apropriação do espaço em dinâmicas de cartografia e mapas, recomendamos John Pickles (2004).
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geopolítico. Para uma compreensão adequada da geopolítica, da ordem narrativa e do governo do território, esse monopólio precisa ser detalhado (destrinchado ao patamar das elaborações burocráticas). A formulação do processo decisório assume feições múltiplas e não só estatais. São variados os atores-sociais que se associam (ou competem) para efetivar um governo territorial. As discussões dos neoinstitucionalistas sobre governança, governabilidade e custo de transações (NORTH, 1990) dão conta de uma das instâncias dessa realidade de instituições formais e informações na configuração do processo de formulações políticas. Porém, essa abordagem institucionalista, de inspiração neoclássica, deixa muitas outras instâncias fora de suas análises. A intenção deste artigo é dar um passo mais adiante no intuito de compreender como operam os sistemas classificatórios nas formulações de políticas estratégicas2 . É dentro da dinâmica metamorfoseada do espectro político (RIBEIRO, 1991) que podemos encontrar o engajamento teórico-prático de burocracias especializadas em políticas estratégicas.
As associações, ao longo da história do Brasil, entre políticos e militares, para a realização de projetos de poder, sempre levaram, inevitavelmente, a rupturas institucionais, e descontinuidade jurídico- legal (CARVALHO, 2004; SODRÉ, 1979). A geopolítica é uma teoria do poder, apoiada fundamentalmente no território, e só tem valor se utilizar os fatores geográficos na
formulação de uma política (MIYAMOTO, 1981, p. 7). A dinâmica de uma geopolítica militar que fundamenta um pensamento político-administrativo para o governo do território, da natureza e da nação, se institui em práticas e categorias historicamente fabricadas para lidar com a complexidade territorial brasileira, em geral, e amazônica, em particular, nitidamente de inspiração alemã e francesa durante a primeira república (SPRANDEL, 2005; STEINBERGER, 1997). É nesse contexto que opera de modo explícito uma geopolítica ambiental que se utiliza de todo o estoque prático-simbólico das categorias anteriormente instituídas na lógica da administração do território amazônico (MEDEIROS, 2018). Em que se pese a institucionalização de práticas e categorias expressas em um ordenamento jurídico, o deslocamento do centro dinâmico de como governar o território amazônico – anteriormente estabelecido por fortificações militares, por fluxos migratórios e por tratados internacionais – intensifica-se, no século XXI, com as narrativas transterritoriais do meio ambiente, tais como, mudança climática, bioprospecção, recuperação florestal, e conservação da biodiversidade, entre outros, incorporando a Amazônia dentro de uma lógica política globalizante.
Por sua vez, apesar das contradições internas, os Estados, em geral, planejam suas ações nas formulações de uma burocracia especializada que deve ser capaz de lidar com diferentes contextos, países e situações,
2 Durkheim procura refundar as concepções aprioristas e empiristas com relação à definição de categoria, inventando uma terceira ordem de coisas por meio das representações coletivas na elaboração de uma teoria sociológica do conhecimento. Durkheim estabelece a base para um pensamento sociológico radical que busca explicação e compreensão para as coisas (fenômenos) na sociedade. Desse modo, ele institui as categorias na organização social, por consequência a regra da classificação vem da regra da organização social que serve para pensar as coisas via elaboração de categorias e classificações, ou seja, sistemas classificatórios (DURKHEIM, 1996).
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a fim de manter sob controle oportunidades comerciais (para seus nacionais) e de segurança (para seus investimentos). Todo esse aparato burocrático está focado em monitorar a conjuntura político-militar dos países. Especificamente, no Brasil, há constante batalha por mobilização de recursos (materiais e humanos) para legitimar ações estratégicas na Amazônia. A burocracia brasileira especializada em questões de segurança nacional, contrainteligência e políticas ambientais não coordena entre si consenso mínimo para viabilizar uma agenda política comum que possa mobilizar atividades socioambientais capazes de contemplar os interesses estratégicos nacionais e da cidadania brasileira. Ao contrário, protagonizam disputas por narrativas hegemônicas, as quais propagam convicções reducionistas, a fim de obter mais visibilidade na opinião pública brasileira que legitime orçamentos maiores para suas pastas. De modo reduzido, este artigo pretende trazer primeiros esboços de uma geopolítica ambiental.
A epistemologia do segredo: geopolítica ambiental e planos estratégicos para a mineração na Amazônia brasileira.
As burocracias estatais especializadas em lidar com estratégias de defesa possuem em suas constituições funcionais a aura do segredo. Pesquisar burocracias estatais especializadas com a temática da Segurança
Nacional torna recorrente expressões tais como: dados sensíveis; confidencial; dado negado; dado ostensivo; tramita em segredo administrativo; informação classificada; entre outras. As práticas de informação nessas burocracias especializadas são regulamentadas em ordenamento jurídico específico que disciplina a divulgação de dados e informações em poder dos órgãos de Inteligência.
Este artigo busca argumentar de que modo narrativas que fazem uso dessas categorias procuram legitimar (ou deslegitimar) ações institucionalmente edificadoras de realidades amazônicas.3 No Brasil, o aparato jurídico- legal sobre acesso à informação e o Serviço de Inteligência fundamenta-se nos seguintes dispositivos: Lei nº 9.883/1999 que institui o Sistema Brasileiro de Inteligência e cria a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN); Decreto nº 4.376/2002 que dispõe sobre a organização e o funcionamento do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN); Decreto nº 8.905/2016 que aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da Agência Brasileira de Inteligência; Lei nº 12.527/2011 que regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37; e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal. Nos EUA, a regulamentação e a disponibilização de documentos estão mais consolidadas. Eles têm o U.S. Department of State Freedom of Information Act que não só regulamenta o acesso aos documentos produzidos pelo governo federal dos EUA, mas também centraliza
3 A leitura de Max Weber (1979) sobre a dominação legitima estabelece três tipos puros: tradicional, carismático e legal. Veremos que o domínio em virtude da legalidade, na validade do estatuto legal (lei), é a mais reivindicada nas disputas sobre a Amazônia.
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nos serviços do National Archives and Records Administration, em prédio próprio, a maioria dos documentos já desclassificados, além de disponibilizar serviços on-line de acesso.
De acordo com Eva Horn e Sara Ogger (2003, p. 66), o que diferencia o tipo de Inteligência produzida por servidores públicos militares e civis, entocados em seus gabinetes, arquivos e repartições, do conhecimento construído em universidades, é sua epistemologia do segredo. Isso cria, ainda segundo essas autoras, um peculiar efeito de hipnose e paranoia. O segredo e a natureza fechada do serviço de Inteligência obstaculizam qualquer competição, desde instrumentos de correção até a mensuração dos ganhos com os esforços empregados (medidas de eficiência e eficácia). Os serviços de Inteligência, em cooperação com o aparato de guerra, projetam inúmeros cenários hipotéticos de guerra, catástrofes naturais, tudo o que coloque à prova a capacidade de as agências governamentais manterem a segurança nacional, i.e., ratificar a aptidão de reproduzir o poder dos Estados nacionais e de proteger os interesses dos que se vinculem a ele. A sanha da máquina de guerra (DELEUZE & GUATTARI 1992) se transforma no furor das ações estratégicas que se projetam na premissa de uma guerra permanente (LEIRNER, 2009). O consenso na literatura especializada é que coletar e interpretar são o que caracterizam o trabalho de Inteligência (KENT, 1945; HILSMAN, 1958; BETTS, 1978; HEYMANN, 1985; LAQUEUR, 1985; HAMILTON, 1987; HERMAN, 1996; SHULSKY, 1992; WARNER, 2002; SCOTT & JACKSON,
2004). Coleta de dados ostensivos (públicos), manejo de fontes e produção de informações em investigações próprias com agentes de campo são um lado da moeda. O outro lado contém processamento, avaliação, interpretação e, o mais importante, repasse da informação para decisão dos formuladores de políticas públicas, os quais decidem agir com base nos diagnósticos apresentados (HORN & OGGER 2003, p. 68)4. Esses dois lados de uma mesma moeda compõem o que a literatura especializada denomina de trabalho de Inteligência e, mesmo que desde os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA, essa concepção venha recebendo pesadas críticas e se reformulando, ainda é a fórmula empregada.
Há uma extensa literatura especializada que procura codificar os trabalhos de Inteligência dentro dos Estados modernos contemporâneos. Geralmente, os próprios operadores da máquina administrativa que executa os trabalhos de Inteligência também são seus maiores formuladores. Por exemplo, Mark M. Lowenthal, presidente do Intelligence & Security Academy (LLC) dos EUA e ex-membro da CIA, define Inteligência como sendo algo que se refere a dados reconhecidamente ou declaradamente necessários para informar policy makers e que tenham sido coletados, processados e especificados para suprir tais demandas. Nas próprias palavras do autor:
Intelligence is a subset of the broader category of information. Intelligence and the entire process by which it is identified, obtained, and analyzed
respond to the needs of policy makers. All intelligence is information; not all information is intelligence (…) Intelligence is the process by
4 A separação entre o analista de informação e o agente de campo no modelo de Inteligência norte- americana levou a críticas da NSA, CIA e do FBI após os ataques suicidas de 11 de setembro de 2001.
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which specific types of information important to national security are requested, collected, analyzed, and provided to policy makers; the
products of that process; the safeguarding of these processes and this information by counterintelligence activities; and the carrying out of operations as requested by lawful authorities (LOWENTHAL, 2009, p. 1-8)5 .
Essa definição estabelece a Inteligência estatal como processo de informar mediante uma demanda por informações específicas que orientem políticas governamentais, significando requerer, coletar, disseminar e produzir certos tipos de informações estratégicas para os interesses que alguns julguem como da nação e do Estado. Assim, Inteligência é todo o processo de coleta e análise de informação que se formula em organizações estatais com a função de reproduzir orientações nacionais estratégicas de defesa, proteção, projeção de poder geopolítico, entre outros. Ainda de acordo com essa literatura específica, as agências de Inteligência existem por quatro razões principais: evitar surpresas estratégicas; promover expertise em longo prazo; dar suporte ao processo político; e manter o sigilo de informação. Para as questões acerca da Amazônia e dos mecanismos político-administrativos e político-militares de formulação de uma geopolítica ambiental amazônica, precisamos reconhecer a necessidade de um serviço de Inteligência instrumentalizado e capaz de exercer suas funções de planejamento em longo prazo.
Na literatura norte-americana especializada, há relativo consenso em relacionar Inteligência com segurança nacional, i. e., política de defesa e política externa, por um lado, e segurança territorial e segurança interna, por outro. As instituições brasileiras seguem a mesma doutrina, mas ainda com pouca publicação. No Brasil o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) tem promovido, por meio da Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais, seminários, congressos e publicações na área. Há também nas universidades centros e institutos voltados para as questões estratégicas e de Inteligência, geralmente vinculados às pesquisas de departamentos de Relações Internacionais, Ciência Política e História. Outra instituição que converge para promover discussões e publicações nessa temática no Brasil é a Associação Brasileira de Estudo de Defesa (ABED). Mesmo havendo uma distinção entre temáticas e objetos de Inteligência e política estratégica quando comparamos Brasil e EUA, percebemos que em termos conceituais as publicações brasileiras ainda acompanham a doutrina da segurança nacional norte-americana.
Desde a aprovação do National Security Act (1947), em acréscimo com outros atos administrativos do executivo, que instituíram a Agência de Segurança Nacional (National Security Agency), o Conselho Nacional de Segurança (National Security Council) e a Agência Central de Inteligência (Central
5 “Inteligência é um subgrupo de uma categoria mais abrangente de informação. Inteligência e todo o processo pelo qual ela é identificada, obtida, e analisada, respondem às necessidades dos legisladores (policy makers). Toda inteligência é informação; nem toda informação é inteligência. [...] Inteligência é o processo em que tipos específicos de informação, importantes para a segurança nacional, são solicitados, coletados, analisados e apresentados aos legisladores; os produtos deste processo; a salvaguarda dos processos e da informação por meio de atividades de contrainteligência; e a realização de operações por demanda das autoridades competentes” (tradução livre).
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Intelligence Agency)6, a Inteligência nos EUA mudou bastante com os ataques de 11 de Setembro de 2001 e a aprovação da Lei nº 108-458 (Intelligence Reform and Terrorism Prevention Act, de 2004). As práticas de Inteligência norte-americanas precisaram se reinventar porque a ameaça à segurança nacional não era mais uma questão de guerra convencional contra exércitos instituídos, mas contra insurgentes contra seus próprios governos pró-EUA e militantes com convicções político-religiosas profundas. No início do século XXI, há uma aproximação da Inteligência estatal com atores não-estatais na formulação de novas estratégias de produção de informação (LOWENTHAL, 2009, p. 5).
Por sua vez, a Inteligência brasileira foi reformulada pela Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999 e pelo Decreto nº 4.376, de 13 de setembro de 2002, que institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e estabelece a integração das ações de planejamento e execução da atividade de Inteligência no Brasil. A redemocratização do país demandou um novo modelo de Inteligência. De acordo com a lei 9.883,
[...] entende-se como Inteligência a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimento dentro
e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado.
Nem todas as agências ou sistemas de Inteligência no mundo são comparáveis.
Elas exercem funções e possuem objetivos distintos conforme as legislações de cada Estado. Os principais modelos de Inteligência são os da: Inglaterra (M15, M16 e Government Communications Headquarters) ; China (Central Military Commission e Communist Party); França (DGSE – Généreale de la Sécurité Extérieure, desde 1982); Rússia (antiga KGB – Soviet Socialist Republic State Security Committee); e o de Israel (Mossad). O modelo brasileiro se aproxima mais do norte- americano, na medida em que possui várias agências estatais integradas em um sistema com uma agência central, sendo os controles e as fiscalizações externas exercidos pelo Congresso Nacional.
Trazendo essa discussão para refletirmos sobre o impacto do aparato de Inteligência para o planejamento da Amazônia brasileira, aludimos à questão da geopolítica ambiental. Não é novidade relacionar riscos de segurança nacional com as crescentes questões ambientais. Johan Holst (1989), Alexander López (2009), Thomas Homer- Dixon (1991; 1994; 1995; 1996), Andrew Hurrell (1992), Ans Kolk (1996), entre outros, realizaram pesquisas que vinculam a politização e a militarização dos desafios ambientais no mundo e se aproximam do que denominamos geopolítica ambiental. Em termos analíticos, a Amazônia como região estratégica está cada vez mais politizada e militarizada dentro de construções teórico-empíricas da região, o que impacta diretamente nas formulações técnico- burocráticas de instituições estatais e não- estatais. Não há uma limitação evidente, as formulações das instituições estão muito
6 É na administração do presidente Herry Truman (1945-1949) que é instituída a lei de Segurança Nacional nos EUA. Abibliografia especializada atribui a este ato presidencial uma completa mudança da organização das Forças Armadas dos EUA, dando novos contornos à condução da política externa.
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Notas para uma geopolítica ambiental: narrativas transterritoriais e o aparato de Inteligência para a Amazônia
atreladas às análises acadêmicas, havendo muita porosidade nos enunciados. Por exemplo, há preocupações com hipóteses de escassez de recursos ambientais e o impacto disso em conflitos sociais. Algumas das análises, tanto acadêmicas quanto de instituições estatais, apontam para a deterioração das condições ambientais que desfrutamos hoje, o que causará consideráveis riscos de desestabilização social (violência civil, conflitos étnicos, insurgências, desobediência civil, guerras por recursos naturais). Muitas das previsões dizem que mudanças ambientais levarão a profundas consequências sociais. Não é difícil, como temos analisado, perceber que a Amazônia entra tanto na ordem das proposições de potenciais soluções às ameaças de mudança climática quanto na ordem prática de estabelecimento de ações territoriais efetivas para concretizar decisões políticas.
Os significados operacionais da guerra permanente opõem os Estados nacionais: por um lado, o aparato de Inteligência dos EUA procura projetar para além de suas fronteiras os objetivos nacionais. Nesse sentido, cada vez mais a Amazônia constitui ponto relevante para a segurança interna dos EUA quando se fala em recursos naturais, mudança climática, escassez de água, produção de alimento, metais estratégicos (por exemplo, nióbio); por outro lado, o aparato de Inteligência brasileiro desempenha o papel de desarticular interesses estranhos aos objetivos nacionais brasileiros (contrainteligência), idealmente, disposto a exercer sua função de promover
os interesses internos; contudo, com o enorme desafio de limitar as ingerências políticas. Esse é o jogo posto. Só que muitos outros jogadores estão em campo além dos aparatos de Inteligência estatais e para além do que se julgue interesse nacional e objetivos nacionais.
Outros atores no jogo geopolítico: minerais estratégicos, tecnologia e sociedade civil.
Instituições não-estatais possuem convicções bastante diversas, porém se assemelham em alguns aspectos na medida em que procuram realizar suas convicções particulares ao mesmo tempo em que instrumentalizam operações estatais, a fim de concretizar missões e interesses que se atribuem. Mesmo que no nível das proposições não haja fronteiras rígidas entre práticas estatais e não-estatais, as instituições estatais elaboram narrativas estratégicas e possuem competências de planejamento com execução orçamentária pública e se servem de uma formalidade diferenciada em termos de operacionalidade de agentes públicos investidos em cargos públicos. As organizações não-estatais combinam narrativas ativistas direcionadas a programas, obras e projetos específicos, muitas vezes, vinculados a recursos e regulamentações estatais, mesmo sendo uma ação privada7. Aqui, optamos por analisar uma instituição não-estatal, Organização Não-Governamental (ONG), que se coloca como contraponto para pensar os limites, os
7 Há ampla área de pesquisa interdisciplinar que discute as relações entre poder público e privado. Contudo, foge de competência deste artigo fazer levantamento exaustivo dessa temática (RUA, 1998; ABRUCIO, 2002).
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conflitos e as interferências de ações estatais e demonstrar como as disputas por conceitos estão para além do aparato estatal.
É nesse sentido que iremos analisar o documento que a ONGEnvironmental Defense Fund (EDF), organização da sociedade civil estadunidense que atua na defesa de direitos indígenas e na preservação da floresta amazônica em cooperação com ONGs brasileiras, elaborou, no fim da década de 1990, para contrapor argumentos de que os interesses norte-americanos em questões indígenas e ambientais tinham, antes de quaisquer convicções humanitárias e ecológicas, um viés geopolítico para conservar minerais potencialmente estratégicos. OFundo consultou os anuários produzidos pelo Bureau of Mines, órgão vinculado ao U.S. Department of the Interior . Os documentos analisados pelo EDF foram: Mineral Commodity Summaries, 1995; e “Potentially Critical Materials (Bureau of Mines, OFR-28-88, Division of Policy Analysis, March 1988). O Bureau of Mines produzia anualmente relatórios de acompanhamento de minerais estratégicos no mundo. Com base nesses documentos o EDF afirma que
[...] pensar que a política internacional
gira em torno de depósitos de matéria prima é a geopolítica do século passado (séc. XIX), geopolítica jurássica. Recursos naturais são menos ‘estratégicos’ do que a tecnologia que os transforma. E ainda, se não fosse assim, os norte-americanos estariam se preocupando com o subsolo do Canadá, da África do Sul e da Rússia muito antes do da Amazônia.
O EDF procura desconstruir a perspectiva de que haveria um “complô planetário” para se apropriar ou para se manter em reservas
minerais estratégicas na Amazônia brasileira. De acordo com o EDF, o argumento do “complô planetário” pressupõe dois fatos: primeiro que existem na Amazônia recursos em escassez nos mercados internacionais; segundo que há reservas minerais excepcionais na Amazônia. Com base nisso, imagina-se que a defesa de direitos indígenas está a serviço de um controle do mercado de minérios, gerando um grande concerto estratégico para controlar essas reservas. O documento do EDF procura desfazer esses dois pressupostos. Primeiro, diz que o Brasil só tem 12% (doze por cento) da reserva de ouro do mundo, portanto, uma importância relativa com relação ao ouro. Com relação ao estanho (feito da cassiterita), o Brasil possui a maior reserva mundial, mais do que o dobro do segundo colocado (China), contudo, de acordo com o documento do EDF, os EUA possuem uma enorme reserva interna, além de o estanho ser produto superabundante no mercado internacional. A Associação de Países Produtores de Estanho (APPE) realiza esforços para diminuir a oferta para obter preços mais vantajosos. Portanto, não é um mineral estratégico, na perspectiva do EDF. Mesmo que fosse, a mudança tecnológica pode mudar esse quadro a qualquer momento. OEDF diz:
[...] quando nos meados da década de 1980, o Paranapanema abriu a mina de Pitinga, no Amazonas, virou as costas para a APPE e encheu o mercado internacional com grandes quantidades de cassiterita de alto teor de estanho. Resultado: o preço caiu pela metade e os mineiros bolivianos, cujos custos de produção eram maiores, e cujo minério era de teor mais baixo de
estanho, foram para a rua. Ninguém, nos EUA, que importa estanho, se preocupou
nem um pouco.
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Ainda segundo o documento do EDF, com relação a diamantes industriais, o Departamento de Minas dos EUA avaliava que o Brasil possuiria 15 milhões de quilates de reserva base, “quase nada perto da Austrália, que tem 900 milhões, ou do Zaire, com 350 milhões”. O maior argumento é acerca dos minérios realmente estratégicos que têm aplicabilidade na produção bélica e na indústria aeroespacial. O documento do EDF analisa o documento “Materiais Potencialmente Críticos”, publicado pelo Bureau of Mines, OFR 28-88, Division of Policy Analysis (1988). O documento analisa 14 substâncias-chave de uso em alta tecnologia dos quais os EUA dependem da importação e que não possuem estoques suficientes. Alguns exemplos são: o germânio (Ge) “usado nos instrumentos de ótica infravermelha, sistema de direcionamento e mira de armas, sensoriamento remoto e outros”; háfnio (Hf) que é o “único material admissível para varas de controle nos reatores nucleares dos submarinos da marinha dos EUA”; gálio (Ga) utilizado em “instrumentos óticos-eletrônicos e lasers para fibras óticas dos mais avançados”. O relatório do EDF conclui que para esses 14 metais estratégicos existiria um país com reservas importantes, em oito desses casos, o Canadá:
O Brasil aparece, uma vez, como uma das cinco fontes principais de alumina (o galium ocorre como subproduto da
transformação da bauxita em alumina). O Departamento de Minas fez essa listagem em 1988 e, depois, não fez mais. É difícil acompanhar as mudanças tecnológicas, tanto em materiais novos
para alta tecnologia quanto em processos de produção.
O relatório da EDF afirma que muito dos
materiais estratégicos são subprodutos do processamento de um ou mais metais comuns, demandando processos mais qualificados de processamento para se aferir benefício comercial e industrial da mineração. A Amazônia brasileira tem reservas consideráveis de minerais “não- estratégicos”, como ferro, manganês e bauxita, “mas a oferta mundial é abundante e barata”.
De acordo com o especialista do EDF, durante a preparação do artigo sobre metais estratégicos, o levantamento anual e a publicação do boletim sobre os metais estratégicos no mundo foram suspensos sem explicação prévia. Oespecialista, com quem conversei, afirmou que ligou nos órgãos competentes para saber a razão do fim do monitoramento. Segundo ele, o responsável pelo levantamento afirmou que não havia mais minerais estratégicos no mundo porque isso dependeria da tecnologia. O estratégico é a tecnologia, portanto, o mineral pode mudar de prioridade com facilidade. Também a extração é o mais complexo. Garantiu ainda que não adianta ter o mineral na terra, é preciso ganho de escala para viabilizar economicamente a extração.
Em pesquisa na Library of Congress em Washington D.C., consegui encontrar o U.S. Geological Survey, vinculado ao Departamento do Interior, que ainda mantém o monitoramento e a publicação desse material. Agora em bases muito mais amplas. Eles monitoram 91 substâncias. Por exemplo, no último levantamento, o Brasil possui 84% da reserva mundial de nióbio (Nb), Canadá 9%, Alemanha 2%, Estônia 2%, outros 3%. O nióbio é considerado um metal extremamente estratégico por
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ser um supercondutor com potencial uso em processadores mais sofisticados do que os de silício para a indústria aeroespacial, tem utilização na indústria nuclear e na produção de jatos e foguetes. A pesquisa do EDF ainda precisa ser atualizada porque o monitoramento continua sendo feito e o cenário mudou um pouco na medida em que o Brasil possui a maior reserva de nióbio. O Brasil produz 91% do minério comercializado no mundo. O segundo maior produtor, o Canadá, é responsável por 7% da produção mundial. A dependência norte-americana do nióbio brasileiro é ponto de preocupação deles. Recentemente o site WikiLeaks publicou um relatório do Homeland Security Department em que se expõe essa dependência classificando-a de preocupante (REF: STATE 6461).
Podemos tirar algumas conclusões de uma geopolítica amazônica que envolva o Estado brasileiro e o Estado norte-americano, organizações não-governamentais brasileiras e norte-americanas, todos atuando na lógica do governo do território. Primeiro, é fato que existe um aparato político-institucional nos EUA interessado em práticas de gestão ambiental e governança global que se traduzem em monitoramentos de ofertas de minerais classificados como “materiais potencialmente críticos”, entre outros tópicos. Segundo, o monitoramento de oferta de minérios e o financiamento a instituições não-estatais interessadas em gestão ambiental não significam necessariamente que haja um complô por trás para destituir a soberania brasileira sobre seu território. Terceiro, pode-se argumentar sobre a legitimidade de interesses comerciais estratégicos em matérias-primas em território brasileiro na medida em que tais
interesses procurem prever comercialmente a oferta internacional de produtos, sem politizar a questão. Quarto, não há dúvidas, dentro dos atuais pressupostos do direito internacional público, que a regulamentação da extração de minerais estratégicos e do governo territorial da Amazônia brasileira cabe ao poder público brasileiro.
Conclusões
Tanto os articuladores de teorias da conspiração quanto os atores institucionais mais pragmáticos de instituições brasileiras concordam que o poder dos EUA se faz sentir em diversas instâncias institucionais que lidam com a Amazônia: seja no financiamento de sua infraestrutura; no desenvolvimento de empreendimentos privados; em financiamento de ONGs; na influência de missionários religiosos; na venda de tecnologia de monitoramento aeroespacial; em acordos bilaterais de processamento de imagens de satélites para monitorar desmatamento; e em modelos e concepções de preservação ambiental. Ou seja, a presença dos EUA se faz sentir em múltiplas dimensões.
Em última instância, podemos concluir que a Amazônia se torna uma peça de ficção codificada em conceitos, regulamentações legais e convicções políticas que não expõem as contradições de suas formulações internas. Apresentam-se ao público verdades especializadas com pouco espaço de contestação e reflexão. Nesse sentido, as narrativas burocráticas, intelectuais, ambientais, militares, comerciais, históricas, jurídicas, midiáticas e não-governamentais pavimentam fluxos de conhecimento entre as redes especializadas e o público em geral, sem
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prover, efetivamente, trâmites contraditórios próprios das reflexões, edificando narrativas de verdades hegemônicas, impróprias para contextos socioambientais tão diversos como o território amazônico.
A geopolítica ambiental no século XXI é sutil e se apresenta na necessidade de dominação técnica, no controle do conhecimento em patentes, na logística de compra e venda de minerais estratégicos que precisam de escala para se tornar rentáveis, e no processamento da natureza. Não adianta ter a maior reserva de nióbio do mundo se não se processa sua potencialidade industrial e tecnológica. É fundamental pensar nas potencialidades internas que, em última instância, só se realizam em território estrangeiro ou com recurso estrangeiro. Instituições estadunidenses procuram influenciar os interesses brasileiros, estabelecendo a lógica das políticas para a Amazônia, em uma dinâmica de troca de dólares por natureza (exportação de recursos naturais ou preservação da floresta). Ou seja, em nossa análise, as instituições estatais
e não estatais dos EUA utilizam-se de mecanismos financeiros para prover recursos tecnológicos, investimentos, diminuição de dívidas, entre outros, em troca de opinar no destino da floresta e dos recursos naturais do território amazônico. Por sua vez, em geral, instituições brasileiras estatais e da sociedade civil pouco fazem para integrar suas ações no nível estratégico. Na maior parte do tempo, as instituições brasileiras exercem papel subsidiário no jogo transnacional de conhecimento estratégico sobre a Amazônia à medida que pouco promovem a integração interna com orientação estratégica. Assim, assuntos como monitoramento aeroespacial, controle de desmatamento, empreendimentos de infraestruturas para garantir o suprimento de matéria prima para o mercado internacional, oferta de produtos agropecuários in natura (soja, laranja, algodão e proteína animal), vigilância das fronteiras terrestres, criação de áreas protegidas, entre outros, são desmembrados e não integram um plano nacional para a Amazônia brasileira.
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AS RELAÇÕES BRASIL-ÁFRICA SUBSAARIANA NO CONTEXTO DA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA
Jorge Luís dos Santos Alves *
Resumo
O artigo examina as relações entre o Brasil e os Estados da África Subsaariana e tem o propósito de delinear a posição da Atividade de Inteligência no processo de tomada de decisão em um ponto específico e relevante da política externa brasileira: a política africana. A África Subsaariana constitui um amplo espaço geoestratégico aberto para a projeção econômica e política brasileira e no qual a Atividade de Inteligência está vocacionada a atuar na busca de oportunidades e detecção de ameaças. Os países africanos de língua portuguesa são casos exemplares do potencial e dos obstáculos dessas relações no campo da Atividade de Inteligência. São abordadas as características da realidade contemporânea da África e os interesses externos ali atuantes. Descreve as linhas básicas da política africana do Brasil e o papel dos serviços de Inteligência africanos no aparato estatal de segurança. Por fim, busca contextualizar as atribuições e competências da ABIN na temática das relações afro-brasileiras.
Palavras-chaves: Agência Brasileira de Inteligência; Atividade de Inteligência; Relações Brasil-África Subsaariana.
BRAZIL-SUB-SAHARAN AFRICA RELATIONS IN THE CONTEXT OF THE INTELLIGENCE ACTIVITY
Abstract
This study aims at examining the relations between Brazil and the Sub-Saharan African States from the point of view of the Intelligence Activity and its position in the decision-making process of a specific and relevant point of the Brazilian foreign policy: the African policy. Sub-Saharan Africa is a broad strategic space open to Brazilian economic and political projection and in which the Intelligence Activity is geared towards acting in search of opportunities and detection of threats. The Portuguese-speaking African countries exemplify the potential and obstacles regarding these relations. We discuss the characteristics of Africa’s contemporary reality and the foreign interests acting there. We describe the basic lines of the Brazilian policy for Africa and the role of the African intelligence services in the state security apparatus. Finally, we seek to conceptualize ABIN attributions and competencies within Afro-Brazilian relations.
Keywords:Agência Brasileira de Inteligência; Intelligence Activity, Brazil-Sub-Saharan Africa Relations.
* Doutor em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Oficial de Inteligência da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN).
Artigo recebido em abril/2018
Aprovado em outubro/2018
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Jorge Luís dos Santos Alves
Introdução
O artigo examina as relações Brasil-África Subsaariana1 com ênfase nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop) integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e sob o enfoque de que estas relações propiciam oportunidades de projeção dos interesses do Brasil no ambiente externo. Nesse contexto, pretendemos analisar e refletir como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), pode contribuir para a identificação dos óbices e potenciais vantagens dessas relações e, desse modo, propiciar maior eficácia no processo de tomada de decisões. Os Palop serão abordados como exemplos da presença de oportunidades capazes de alavancar a projeção econômica e política do Brasil. A primeira premissa do estudo é que a cooperação e a interação com os serviços de Inteligência africanos constituem instrumentos para alavancar a melhoria da segurança coletiva em áreas de conflito ou naquelas identificadas com o entorno estratégico do Brasil (a costa ocidental da África). A segunda premissa é que há um conjunto de oportunidades, inexploradas ou subutilizadas, de projeção de poder do Brasil na África no qual a Atividade de Inteligência é chamada a exercer a sua atribuição de subsidiar de forma prospectiva e preventiva o processo decisório nacional e as ações de governo.
Inicialmente, abordamos a realidade contemporânea da África e os interesses externos ali atuantes (europeus, norte-
americanos e chineses). Em seguida, é descrita a política africana do Brasil e os motivos de a África ser um campo de oportunidades aos interesses do Brasil tendo como recorte os Palop. No terceiro tópico, são enfocados os serviços de Inteligência africanos e a sua inserção no aparelho de segurança do Estado e, por fim, situamos o “lugar” potencial da Inteligência de Estado na elaboração e na execução da política africana do Brasil.
Para a elaboração desse estudo, foram empregadas a literatura especializada sobre a temática africana e a Atividade de Inteligência, inclusive os documentos relativos à Política Nacional de Inteligência (PNI) e à Estratégia Nacional de Inteligência (ENI), e fontes disponíveis na internet.
Panorama da África subsaariana
A compreensão da realidade africana deve ter como pressuposto a heterogeneidade cultural, política e social do continente. É um ponto comum entre os africanistas brasileiros (Alberto da Costa e Silva, José Flávio Sombra Saraiva, Pio Penna Filho) a percepção de que a mídia nacional destaca as catástrofes naturais e humanas, os conflitos políticos e sociais; enquanto os aspectos positivos são quase ignorados. Estas percepções dicotômicas geram e reforçam estereótipos que dificultam uma estratégia duradoura dos interesses do Brasil na África (SARAIVA, 2008, p. 89-91).
Dois fatores contribuem para a configuração
1 AÁfrica Subsaariana é a porção do continente africano que se estende do deserto do Saara em direção ao sul margeada pelos oceanos Atlântico e Indico.
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As relações Brasil-África subsaariana no contexto da atividade de Inteligência
da realidade africana contemporânea: a herança do colonialismo e a estrutura do Estado africano pós-colonial. O colonialismo europeu foi de curta duração, mas altamente deformador das instituições africanas endógenas. Oeuropeu alterou, em período relativamente curto, as estruturas sociais e políticas, introduziu novas formas de organização da vida sócio-econômica e desenhou fronteiras que escapavam à lógica interna das sociedades pré-coloniais.
Os Estados pós-coloniais na África criaram estruturas semelhantes àquelas dos Estados colonizadores sem possuírem recursos financeiros e estruturas econômicas adequadas para sustentá-las. Assim, formaram-se burocracias numerosas, geralmente recrutadas no meio étnico do qual se originava a liderança política, a exemplo dos quimbundos em Angola, dos balantas na Guiné-Bissau, dos baoulés na Costa do Marfim e dos sereres no Senegal. Os recursos para sustentar essas burocracias são extraídos das atividades produtivas do campo (agricultura, mineração) em benefício das elites inseridas nas burocracias civil e militar. Neste processo, há uma transferência de renda durante a qual os camponeses são obrigados a plantar gêneros para exportação (algodão, cacau, café, borracha, chá) em detrimento de gêneros de subsistência (arroz, feijão, mandioca, milho, sorgo). As Caixas de Estabilização, criadas para regular os preços das matérias-primas, atuam como instrumentos de transferência de recursos do campo para a cidade (M’BOKOLO, 2011, p. 641-642). Esta situação constitui um dos agentes do estado endêmico de insegurança coletiva no continente, pois as constantes guerras civis no período pós- colonial podem ser interpretadas como
guerras do campo contra a cidade mesmo quando adquirem contornos ideológicos (Guerra Fria) ou étnicos (Guerra de Biafra). Os conflitos se desdobram em saques ou alianças com negócios ilícitos para financiar clientelas políticas e milícias. Configurou- se, assim, a imagem de falência do Estado na África se pensarmos na sua organização de acordo com o modelo ocidental e desconsiderando-se a permanência de estruturas sociais e tradições políticas pré- coloniais (FERREIRA, 2014, p. 137-144).
O quadro político, econômico e social da grande maioria dos países da África Subsaariana na última década do século XX caracterizou-se por um cenário em que o Estado pós-colonial parecia vergar sob o peso da crise econômica, do esgotamento dos regimes políticos monopartidários, da corrupção, do genocídio e do saque dos recursos naturais. Aos fatores humanos, somaram-se catástrofes naturais, às quais, por certo, não são alheias as ações antropogênicas, a exemplo da seca no Sahel e de epidemias (HIV/AIDS). No início do século XXI, o cenário que dava razão à vertente pessimista de leitura da África foi matizado por dinâmicas externas e internas ao continente. No plano econômico, o boom das commodities impulsionado pela expansão econômica chinesa proporcionou a entrada de recursos que trouxeram certa estabilização política, muito embora permanecessem os vícios da corrupção, do patrimonialismo e da burocratização. No plano político, desde o fim dos anos 1980, a África testemunha a transição do monopartidarismo, das ditaduras personalistas e dos governos militares para o pluripartidarismo, embora nem sempre haja garantia de concorrência eleitoral equilibrada. Ainda inacabada,
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Jorge Luís dos Santos Alves
a transição política é dinamizada por pressões externas e pressões domésticas impulsionadas por mobilizações populares e pressão de grupos da oposição (SARAIVA, 2015, p.25-28).
Esta situação constitui o pano de fundo do funcionamento dos serviços de Inteligência (SIs) africanos, da sua percepção pela sociedade civil em relação à legitimidade e da sua influência nas relações de cooperação ou antagonismo com os serviços congêneres.
Panorama dos interesses europeus, norte- americanos e chineses na África
No início do século XXI, ocorreu a renovação do interesse de diversos atores internacionais pela África2. Os interesses europeus, notadamente as antigas potências coloniais (França, Portugal, Reino Unido) adquiriram novos contornos inseridos no conjunto de ações de política externa da União Europeia (UE). O Reino Unido, através da Comissão para a África (criada em 2004), propôs soluções para a erradicação da pobreza, o combate à corrupção e o desendividamento dos países africanos com o emprego de “soluções técnicas visando ao desenvolvimento” que se opõem à abordagem norte-americana baseada em critérios políticos (democracia) e de segurança (guerra ao terror) (HUGON, 2009, p.130-131). A França substituiu as ações “paternalistas” (fundos de ajuda ao desenvolvimento e
cooperação militar) nas suas antigas colônias africanas por uma estratégia multilateral de valorização da relação União Europeia/ África. Esta estratégia, contudo, não é isenta de oscilações e ambiguidades, como demonstra a intervenção militar nas guerras civis em Côte d’Ivoire em 2004 e 2011, no Mali e na República Centro-Africana (RCA) em 2013. Para os Estados Unidos da América (EUA), os países da África Subsaariana de maioria ou parcela significativa de confissão islâmica, casos de Nigéria, Níger, Somália e Sudão, adquiriram importância geopolítica em razão da disseminação do fundamentalismo religioso, considerado fonte de recrutamento para os grupos terroristas Al Qaeda no Magreb (AQIM), Al Shabaab e, a partir de 2014, o Boko Haram e o Estado Islâmico (EI).
O petróleo constitui outra dimensão da política estadunidense para a África, e o Estado insular de São Tomé e Príncipe é representativo dessa questão. De um lado, empresas norte-americanas obtiveram a concessão para exploração de petróleo (Chevron, ExxonMobil) e, de outro, a posição geográfica (Golfo da Guiné, entre o delta do rio Níger e a foz do rio Congo) faz do arquipélago um “porta- aviões” natural capaz de monitorar países ricos em hidrocarbonetos, a saber, Gabão, Guiné Equatorial, Nigéria e República do Congo (ex-Congo Brazzaville). A criação de um comando militar para o continente (Africom) e a recriação da IV Frota (Atlântico Sul) explicitam as intenções
2 Alguns autores apontam para uma nova partilha da África com participação ativa de Estados emergentes: Brasil, China, Índia e Turquia. Além dos atores estatais, cresceu ou renovou-se a presença de organizações não-governamentais, empresas transnacionais, igrejas e organismos internacionais, a exemplo de Organização das Nações Unidas (ONU), União Europeia, União Africana e CPLP. (CARMODY & OWUSU, 2011, p. 235).
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As relações Brasil-África subsaariana no contexto da atividade de Inteligência
de projeção de poder dos EUA na África baseada no enfrentamento ao terrorismo e na segurança energética.
Outro ponto importante das agendas norte-americana e europeia ocorre no campo das ideias e do poder simbólico. No processo de transição política da África Subsaariana na passagem do século XX ao XXI, houve a difusão de uma agenda de valores considerados “naturais” e essenciais para a reforma das estruturas estatais: a democracia, os direitos humanos, o livre-mercado e a governança. A adesão a esses valores (ainda que de caráter formal) representa, para as elites dirigentes africanas, a oportunidade de obter recursos na forma de investimentos ou doações dos EUA e da UE. A pressão externa por reforma do Estado foi simultânea à expansão das redes criminosas transnacionais e à ameaça do terrorismo, que trouxeram para as potências ocidentais um novo valor estratégico para a África Subsaariana, embora numa dimensão secundária em relação a outras regiões do planeta (PLESSIS, 2005).
Portugal foi o último império colonial a se retirar da África. Após 14 anos de guerras coloniais (1961-1975), a revolução de abril de 1974 iniciou um processo abrupto de descolonização. Nos Palop, a memória do colonialismo desperta animosidade e desconfiança em relação ao antigo colonizador e provoca resistências no âmbito da CPLP (SARAIVA, 2015, p. 110). Portugal ainda possui interesses econômicos robustos no continente, notadamente em Angola, e políticos articulados à cooperação militar e estratégica no Atlântico Sul (BERNARDINO, 2011). Mas não é uma via de mão única, pois, para a África
lusófona, a relação com Portugal é uma via de comunicação com a EU e constitui uma forma de manifestar e defender os seus interesses junto a um dos principais polos de investimento e ajuda internacional.
O que dinamizou e abriu novos cenários nas relações externas dos países da África Subsaariana foi o ciclo expansivo da economia da China. A inserção chinesa na África ocorre desde o período da descolonização. As relações sino-africanas eram então guiadas por motivações político- ideológicas enunciadas na Conferência de Bandung (1955), por exemplo, o apoio aos movimentos de libertação nacional e a cooperação bilateral. A necessidade de fontes de abastecimento de matérias-primas (hidrocarbonetos, minérios, madeira, gêneros agrícolas) em razão da expansão econômica constitui o cerne da política externa chinesa para a África no inicio do século XXI. Ao contrário das potências ocidentais, a atuação chinesa nos países africanos não está limitada por contingências de ordem ambiental, política ou direitos humanos. Na África, a China aproveitou o vazio do pós- Guerra Fria para afirmar-se como potência global a partir de meados da década de 1990. A expansão chinesa caracteriza-se pela concepção da não-intervenção nos assuntos internos dos Estados africanos, muitos dos quais acusados de violação dos direitos humanos (Sudão) ou má governança (Zimbábue). Nesse sentido, a China propõe um modelo concorrente aos valores ocidentais de organização do Estado, o que, além de vantagens no campo econômico, proporciona uma alternativa de aliança nas relações internacionais. Os investimentos chineses na África e as exportações desta para a China representaram uma ruptura,
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Jorge Luís dos Santos Alves
entre as economias africanas e as economias europeias, do modelo vigente desde o período colonial; o intercâmbio sino- africano prossegui após as independências e formou uma relação de dependência. No entanto, a relação com a China não alterou as características das trocas comerciais, que permaneceram centradas na exportação de commodities e na importação de bens manufaturados e serviços, mas ganharam a participação ativa de redes mercantis controladas por africanos (SARAIVA, 2008, p. 309-310; TAYLOR, 2010, p. 76).
A política africana do Brasil
A política africana do Brasil caracteriza- se pela oscilação e pela descontinuidade. Estratégias de aproximação são sucedidas por afastamentos motivados por injunções da política externa e interna (adoção do neoliberalismo econômico, fim da guerra fria e globalização) ou pela priorização de resultados políticos e econômicos imediatos (SARAIVA, 2015, p. 95-96; FARIAS, 2017, p. 91-149). Entre a última década do século XX e meados da segunda década do século XXI, ocorreram dois momentos distintos nas relações Brasil-África. A década de 1990 caracterizou-se por uma diminuição gradativa da importância estratégica da África para o Brasil em razão da redefinição de prioridades da política externa. No governo Lula da Silva, ocorre um redimensionamento da agenda diplomática do País com o incremento da cooperação sul-sul, na qual a África Subsaariana adquiriu nova centralidade na formulação da política externa. São marcas desse período a diplomacia presidencial, a inserção de grandes grupos nacionais na
economia de países africanos nos setores de construção pesada e mineração, e a celebração de acordos de cooperação nas áreas técnica, humanitária, educacional, econômica e militar (JORGE, 2015, p. 50- 57). No contexto do boom das commodities de meados dos anos 2000, a reorientação da estratégia diplomática do Brasil trouxe um crescimento expressivo do intercâmbio comercial, um objetivo permanente das relações com a África Subsaariana desde os anos 1960. Os seguintes vetores indicam a conjuntura da política africana do Brasil nas primeiras décadas do século XXI:
1. A priorização de projetos de desenvolvimento como obras de infraestrutura, transferência de tecnologia “tropicalizada” brasileira, a produção de biocombustíveis adequada às necessidades locais e políticas de acesso a medicamentos para combater HIV/ AIDS, a malária e a tuberculose. Empresas brasileiras estabeleceram, ou ampliaram, as suas atividades na África (Odebrecht, Petrobrás, Vale) e intensificaram-se as ações de cooperação de instituições públicas, a exemplo da Embrapa em Gana e Moçambique e da Marinha na Namíbia (JORGE, 2015, p. 50-57).
2. A concertação da política bilateral orientada para a África do Sul, a Nigéria e os países da África lusófona (principalmente Angola). Mas houve também uma ambiciosa extensão da presença diplomática materializada na abertura ou na reativação de 19 embaixadas em países até então em segundo plano, casos do Sudão e de Benim, e na visita do presidente Lula da Silva a 24 países do continente (JORGE, 2015, p. 43). A diplomacia presidencial
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As relações Brasil-África subsaariana no contexto da atividade de Inteligência
do governo Lula foi o instrumento mais visível da retomada da política africana 3
ocorrida em sincronia com a percepção de um sentimento de “renascimento africano” materializado na fundação da União Africana (UA).4 A diplomacia brasileira incrementou ainda a participação em fóruns multilaterais: a CPLP, o Fórum de Diálogo Índia-Brasil- África do Sul (IBAS), e a iniciativa América do Sul-África (ASA), cuja primeira cúpula foi realizada em Abuja (Nigéria) em 2006. As iniciativas supramencionadas visavam a conquistar apoio para a obtenção de uma vaga no Conselho permanente das Nações Unidas. Atrelado a este objetivo, o Brasil tem integrado Missões de Paz em Angola, Guiné-Bissau e RDC.
3. A aproximação cultural (soft power ) devido aos laços histórico-culturais que demonstram o longo percurso comum com as nações africanas e a sua contribuição na construção da brasilidade. Além disso, nos países africanos lusófonos, é bastante difundida a produção da indústria cultural brasileira (música, programas de televisão). Desde a última década do século XX, o soft power brasileiro tem se manifestado de uma nova forma. Trata-se da expansão das igrejas evangélicas lideradas por missionários brasileiros com expressiva presença nas mídias locais e importante atuação social em Angola e Guiné-Bissau (MASSEY, 2016).
4. As relações com os Estados africanos situados na vertente atlântico-sul adquiriram maior relevância estratégica conforme os
objetivos da Política e da Estratégia Nacional de Defesa (PND/END) (BRASIL, 2016, p. 6). Nestes documentos, a Defesa incorpora, ao seu pensamento estratégico, o Atlântico Sul, área por onde transitam de 70% a 80% do transporte marítimo do Brasil e ponto cada vez mais sensível na geopolítica mundial em razão do potencial de petróleo e gás natural tanto no litoral do Brasil quanto no da África Ocidental. Também é uma área de crescente insegurança marítima em razão das ações de pirataria no Golfo da Guiné (ABDENUR e SOUZA NETO, 2014, p. 5-21).
Não obstante as oportunidades econômicas e políticas apresentadas pelos países africanos, a volatilidade político-social do continente pode propiciar a emergência de situações desfavoráveis para o interesse nacional brasileiro. Odesconhecimento, ou o conhecimento insuficiente, das complexas realidades locais dificulta a formulação de estratégias eficazes tanto na esfera pública quanto na privada nas relações Brasil- África. Neste contexto, a ampliação de parcerias e o intercâmbio de informações entre as instituições componentes do Sisbin, coordenado pela Abin, e os serviços de Inteligência africanos são fundamentais para delinear cenários e as suas variáveis mais próximas da realidade.
Os países africanos de língua oficial portuguesa
3 A priorização das relações Brasil-África na agenda da política externa do País é frequentemente criticada por uma fração dos formadores da opinião pública e dos setores intragovernamentais que defendem uma estratégia político-diplomática orientada para o “norte” (EUA e Europa Ocidental).
4 AUAsucedeu a Organização da Unidade Africana (OUA). Fundada em setembro de 2002 e com sede emAdis Abeba/Etiópia, a UApretende promover a democracia, os direitos humanos e o desenvolvimento na África.
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