RBI
evista rasileira de Inteligência
Número 13, dezembro 2018, ISSN 2595-4717

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA
Revista Brasileira de Inteligência
ISSN 1809-2632 versão impressa ISSN 2595-4717 versão online
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Presidente Michel Miguel Elias Temer Lulia.
GABINETE DE SEGURANÇA INSTITUCIONAL
DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
Ministro Sérgio Westphalen Etchegoyen.
AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA
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SECRETARIA DE PLANEJAMENTO E GESTÃO
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Editor-Chefe
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Conselho Editorial
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Comissão Editorial da Revista Brasileira de Inteligência
Ana Maria Bezerra Pina, Delanne Novaes de Souza, Eduardo Alexandre de Farias, Eduardo Henrique Pereira de Oliveira, Fábio Nogueira de Miranda Filho (editor-chefe), Ryan de Sousa Oliveira, Roniere Ribeiro do Amaral (editor substituto).
Pareceristas
Ana Maria Bezerra Pina, Bruno Seixas de Noronha, Delanne Novaes de Souza, Edson de Moura Lima, Eduardo Castello, Eduardo Henrique Pereira de Oliveira, Fábio Nogueira de Miranda Filho, Gills Vilar-Lopes, Pedro Nogueira Gonçalves Diogo, Ryan de Sousa Oliveira, Roniere Ribeiro do Amaral.
Capa
Helen Santos Rigaud.
Editoração Gráfica
Luciano Daniel da Silva.
Revisão
Caio Márcio Pereira Lyrio, Cláudia Suzano de Almeida e Eliete Maria de Paiva.
Catalogação bibliográfica internacional, normalização e editoração
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Disponível em
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300 exemplares.
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Gráfica - Abin.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Revista Brasileira de Inteligência / Agência Brasileira de Inteligência.
– n. 13 (dez. 2018) – Brasília: Abin, 2005 –
163 p.
Anual
ISSN 1809-2632 versão impressa
ISSN 2595-4717 versão online
1. Atividade de Inteligência – Periódicos 1. Agência Brasileira
de Inteligência.
CDU: 355.40(81)(051)

SUMÁRIO
EDITORIAL 7
O IMPACTO DE VIESES COGNITIVOS SOBRE A IMPARCIALIDADE DO CONTEÚDO DE INTELIGÊNCIA
André Mendonça Machado
9
O IMPACTO DE BIG DATA NA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA Paulo M. M. R. Alves
25
AMBIENTES COMPLEXOS E A SUPERAÇÃO DA GESTÃO POR COMANDO E CONTROLE NAS OPERAÇÕES DE INTELIGÊNCIA Marcelo Furtado M. Paula
45
ACONFIANÇACOMOREQUISITOPARAAGESTÃODE SEGURANÇA EM ORGANIZAÇÕES DE INTELIGÊNCIA DE ESTADO
Marcel Carrijo de Oliveira
61
NOTAS PARA UMA GEOPOLÍTICA AMBIENTAL: NARRATIVAS TRANSTERRITORIAIS E O APARATO DE INTELIGÊNCIA PARA A AMAZÔNIA
Rodrigo Augusto Lima de Medeiros
77
AS RELAÇÕES BRASIL-ÁFRICA SUBSAARIANA NO CONTEXTO DA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA
Jorge Luís dos Santos Alves
93
O HARDWARE COMPROMETIDO: UMA IMPORTANTE AMEAÇA A SER CONSIDERADA PELA ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA
Gustavo Andrade Bruzzeguez
Clóvis Neumann
João Carlos Félix Souza
113
INTELIGÊNCIA ECONÔMICA DE ESTADO: NECESSIDADE ESTRATÉGICA PARA O BRASIL
Delanne Novaes de Souza
129
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A AGENDA LEGISLATIVA DA ABIN: ANÁLISE DAS PROPOSIÇÕES SOBRE ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA DE ESTADO NO CONGRESSO NACIONAL DE 1997 A 2017
Lívia M. M. Sales & Luiz Antonio P. Valle
149
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Editorial
Nos últimos dez anos, a Atividade de Inteligência do Brasil esteve envolvida com dois grandes processos, um de natureza histórica e outro de natureza política.
O processo de natureza histórica inicia-se em 2006, quando a Atividade de Inteligência engajou-se na primeira experiência de atuação integrada de órgãos em grandes eventos. Esse ciclo histórico inclui a série: Jogos Pan-Americanos (2007), Rio+20 (2012), Copa das Confederações (2013), Jornada Mundial da Juventude (2013), Copa do Mundo FIFA (2014) e Jogos Olímpicos e Paralímpicos (2016). Um ciclo que marca a história do país.
No seio da Agência Brasileira de Inteligência, isso inspirou a criação de um curso de pós-graduação lato sensu denominado “Curso de Gestão Integrada da Atividade de Inteligência”, iniciado em 2018 e conduzido na Escola de Inteligência com a colaboração da Diretoria de Inteligência Policial do Departamento de Polícia Federal, do Instituto Rio Branco e da Escola de Inteligência Militar do Exército. Além disso, esse conjunto de grandes eventos condicionou outro grande processo: a publicação de atos normativos básicos para essa área da administração federal.
O outro processo, de natureza política, inicia-se em 2009, com o trabalho de elaboração dos marcos normativos da Atividade. O primeiro documento a ser concebido foi a Política Nacional de Inteligência. Contingências políticas adiaram sua publicação, o que ocorreu em junho de 2016. Esse documento foi complementado, em dezembro de 2017, pela Estratégia Nacional de Inteligência. Juntamente com a Estratégia, em maio de 2018, um Plano Nacional de Inteligência veio a detalhar a Política. Esses documentos de normatização da Atividade de Inteligência consolidam o intenso esforço de legitimação e racionalização desse segmento estatal.
O que se vê nesses processos é a prática e a gestão pública, em procedimentos paralelos e entrelaçados, determinando o aperfeiçoamento da Atividade de Inteligência. A extensão desses processos por governos distintos também evidencia o aspecto técnico desse setor da administração pública do Estado, lastreada em lei e políticas públicas.
A Revista Brasileira de Inteligência (RBI) é produto da Abin que contribui para a consistência dessa condição técnica. A RBI reúne o pensamento de profissionais, do Sistema Brasileiro de Inteligência e de outros campos, interessados em contribuir para a reflexão e, consequentemente, para o desenvolvimento dessa atividade.
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Na RBI, vale o juízo corroborado em evidências e em argumentação racional. Ela é veículo público (na internet, exposto ao escrutínio do leitor) e republicano. Ela promove também o debate e, assim, exercita a democracia.
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Comissão editorial
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OIMPACTO DE VIESES COGNITIVOS SOBRE A IMPARCIALIDADE DOCONTEÚDO DE INTELIGÊNCIA
André Mendonça Machado *
Resumo
Pesquisas em Psicologia Cognitiva demonstram que a mente humana está sujeita a uma variada sorte de condicionantes que limitam sua racionalidade e interferem na capacidade do homem de fazer escolhas e julgamentos lógicos. Na origem desse processo estão os vieses cognitivos, erros de raciocínio causados pela simplificação da representação do mundo pelo intelecto. O estudo desse fenômeno interessa aos profissionais de Inteligência pelo risco que representa para o processo de produção do conhecimento e, consequentemente, para o assessoramento no processo decisório nacional. Uma das características distintivas do conteúdo de Inteligência, a imparcialidade, é particularmente vulnerável à incidência desses vieses, o que exige controle por parte das organizações de Inteligência como premissa para garantir a utilidade de seu produto para a sociedade e o Estado. O objetivo do trabalho é assinalar o risco do impacto dos vieses cognitivos sobre a imparcialidade e indicar possibilidades de aperfeiçoamento da gestão do processo de produção do conhecimento. Ações de capacitação profissional e de aprimoramento nos controles dos processos de trabalho contribuem para a melhoria da qualidade do produto final das agências de Inteligência e para o fortalecimento da Atividade de Inteligência como instrumento de defesa dos interesses nacionais.
Palavras-chaves: Viés cognitivo, viés de confirmação, princípio da imparcialidade, processo decisório, assessoramento de Inteligência.
THE IMPACT OF COGNITIVE BIASES ONTHE IMPARTIALITY OF INTELLIGENCE CONTENT
Abstract
Research in Cognitive Psychology shows that the human mind is subject to a variety of constraints, which curb its rationality and interfere with man’s ability to make logical choices and judgments. Errors of reasoning caused by the simplification of the representation of the world by the intellect, that is to say the cognitive biases, are at the origin of this process. The study of such phenomenon draws the attention of Intelligence professionals, since cognitive biases pose a risk for the knowledge production process and, therefore, for the proper advising to the national decision-making process. One of the distinctive attributes of Intelligence, impartiality, is particularly vulnerable to the occurrence of cognitive biases, thus requiring control by Intelligence organizations as a premise to ensure the usefulness of their product to society and the state. The objective of this work is to point out the risk of the impact of cognitive biases on impartiality and indicate opportunities for improving the management of the knowledge production process. Professional training and improvement in the control of work processes, with focus in cognitive biases, may contribute to the enhancement of the final product of Intelligence agencies and to the strengthening of the Intelligence activity.
Keywords: Cognitive bias, confirmation bias, decision-making process, Intelligence advisory role. * Oficial de Inteligência da Agência Brasileira de Inteligência.
Artigo recebido em julho/2018
Aprovado em setembro/2018
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André Mendonça Machado
Introdução
O sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman cunhou a expressão Modernidade Líquida para referir-se à forma fluida e efêmera das relações. Nesses tempos líquidos, os produtos são descartáveis, a economia é volátil, as instituições são instáveis e as certezas são passageiras. Desigualdade social, violência urbana, terrorismo e corrupção liquefizeram as ligações entre as pessoas e colocaram em xeque o papel do Estado. É nesse ambiente de indeterminação que as agências de Inteligência devem produzir conhecimento útil a fim de colaborarem na redução de incertezas no âmbito do processo decisório nacional. Uma questão com a qual os gestores dos processos de produção de conhecimento têm que lidar é a manutenção das qualidades intrínsecas de um conteúdo de Inteligência, entre elas a imparcialidade, característica que confere singularidade à Inteligência de Estado quando comparada com outras atividades.
O problema levantado neste trabalho é como uma organização de Inteligência pode preservar o atributo da isenção diante de uma ameaça específica: o impacto de vieses cognitivos sobre o conteúdo de Inteligência. Essa preocupação se justifica em virtude da pouca importância dada a esse controle na gestão do processo de produção de conhecimento. Tradicionalmente, são empreendidos esforços em uma diversa gama de iniciativas: refinamento da coleta em fontes abertas, aprimoramento da atividade de busca com fontes humanas e meios técnicos, intensificação do intercâmbio com órgãos congêneres nacionais e estrangeiros, contratação de mais pessoal e capacitação em temas, idiomas e escrita. Porém, analistas
não são treinados para aprimorar sua forma de pensar. Para abordar essa temática, foram feitas uma revisão de literatura sobre vieses cognitivos e uma análise do instituto do princípio da imparcialidade em documentos estruturantes da Atividade de Inteligência. A combinação desses elementos permitiu proceder a um exame do atual estado do problema. O objetivo deste trabalho é especificar alguns vieses cognitivos, assinalar seu risco para a imparcialidade na produção do conhecimento e apontar iniciativas de gestão que ajudem a mitigar os efeitos indesejados desse fenômeno.
Modelos mentais e viés cognitivo: Olimite da racionalidade
Segundo Heuer (1999, p. 3), a mente humana, em virtude de sua capacidade limitada, não consegue lidar diretamente com a complexidade do mundo. Por isso, ela constrói um modelo mental simplificado da realidade e usa essa representação como objeto de trabalho sobre o qual são feitas suas análises. Assim, reconhece Heuer, o entendimento humano do mundo é o retrato de uma escolha subjetiva. A cognição é ajustada de acordo com as limitações inerentes ao funcionamento mental, sujeito a diversos tipos de vieses, entre eles o viés cognitivo. Vieses cognitivos são erros de raciocínio causados por estratégias mentais de simplificação geradas no esforço de processamento de informações. Não se confundem com outros tipos de vieses, como os organizacionais e culturais ou ainda os intencionais com objetivos escusos. Davies (1999, p. 21) explica que a mente constrói sua própria versão de realidade
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O impacto de vieses cognitivos sobre a imparcialidade do conteúdo de Inteligência
com base nas informações fornecidas pelos sentidos e que esta entrada sensorial é mediada por processos mentais complexos que determinam quais informações são selecionadas e o significado que lhes é atribuído. Segundo ele, o que e como as pessoas percebem é fortemente influenciado por experiências passadas, educação, valores culturais, exigências funcionais e normas organizacionais, tanto quanto pelas especificidades da informação recebida.
Para Kahneman quando um julgamento é feito, a mente não está necessariamente consciente de como esse processo ocorreu. Apenas a interpretação mais adequada dos fatos desponta e possíveis incertezas, obscuridades ou ambivalências são eliminadas. A mente contenta-se com o que foi captado e não sente necessidade de confrontar a representação elaborada no intelecto. Kahneman explica ainda que a quantidade e a qualidade dos dados em que a narrativa construída está baseada são irrelevantes. Quando a informação é escassa, a mente opera “como uma máquina tirando conclusões precipitadas”. A consistência da história importa mais que sua completude. Na prática, um volume maior de informações torna mais difícil para o intelecto processar e ajustar tudo o que se sabe dentro de um padrão coerente. A mente constrói a melhor história a partir da informação disponível e é esta a versão que prevalece como representação do mundo real. “Nossa reconfortante convicção de que o mundo faz sentido repousa em um alicerce seguro: nossa capacidade quase ilimitada de ignorar nossa própria ignorância” (2012, p.
205 - 251).
As classificações e descrições dos tipos de vieses cognitivos variam entre os diferentes autores. O que eles têm em comum é a propriedade de impedir a ampliação da capacidade lógica de produzir julgamentos distantes do modelo mental a que o intelecto está habituado. Segundo Kahneman (2012, p. 126),
[...] o estado normal de sua mente é que
você dispõe de sentimentos e opiniões intuitivos sobre quase tudo que surge
em seu caminho. Você simpatiza ou antipatiza com uma pessoa bem antes de saber muita coisa sobre ela; você mostra confiança ou desconfiança em relação a estranhos sem saber por quê; você sente
que um empreendimento está fadado ao sucesso sem fazer uma análise. Quer você afirme, quer não, muitas vezes tem respostas para perguntas que não compreende completamente, apoiando-se
em evidências que não é capaz de explicar nem de defender.
As avaliações básicas desempenham papel importante na formação de um julgamento, pois substituem avaliações mais profundas em questões mais difíceis. Esse processo mental é abordado pelos pesquisadores de heurísticas1 e vieses. Eles explicam que se uma resposta satisfatória a uma pergunta difícil não é rapidamente encontrada, a mente buscará responder a uma pergunta relacionada que é mais fácil.
Como exemplo de viés cognitivo, Heuer descreve a “ancoragem”, estratégia mental intuitiva e inconsciente para simplificar a tarefa de fazer julgamentos (1999, p. 150). Um ponto de partida qualquer –
1 A definição de heurística é “um procedimento simples que ajuda a encontrar respostas adequadas, ainda que geralmente imperfeitas, para perguntas difíceis” (KAHNEMAN, 2012, p. 127).
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André Mendonça Machado
por exemplo, certa avaliação anterior do mesmo objeto por outra pessoa – é usado como primeira aproximação do problema, à qual novas informações são adicionadas. A partir daí, será elaborada uma análise com o objetivo de ajustar o julgamento anterior à nova realidade. Entretanto, o que ocorre na prática é que o ponto de partida serve como uma âncora que reduz o volume de ajustamento e assim a estimativa final permanece mais perto do ponto de partida do que poderia estar. Tversky e Kahneman explicam que diferentes pontos de partida produzem diferentes estimativas finais, enviesadas na direção dos valores iniciais (2012, p. 533).
Kahneman descreve um fenômeno semelhante denominado “efeito halo” (2012, p. 107). Ele explica que a ordem com que uma pessoa observa uma série de eventos vai influenciar o julgamento final a respeito dessa sequência. O efeito halo aumenta o peso das primeiras impressões em relação às seguintes, às vezes a tal ponto que a informação subsequente é em grande parte desperdiçada. Uma vez formada uma narrativa lógica e coerente, a mente começa a dispensar dados adicionais por considerá- los excessivos, em particular aqueles que possam trazer incertezas. Taleb chama essa limitação mental de “falácia narrativa”. Para ele, a mente prefere as histórias compactas à interpretação profunda, o que a torna vulnerável a representações distorcidas do mundo. “Nós gostamos de histórias, gostamos de resumir e gostamos de simplificar, ou seja, de reduzir a dimensão das questões” (2008, p. 100).
Taleb explica ainda que, no esforço de atribuir coerência à história, a mente
reconstrói relatos inconsistentes do passado, acreditando que são verdadeiros. Para ele, “tendemos a lembrar mais facilmente os fatos de nosso passado que se encaixam em uma narrativa, enquanto tendemos a negligenciar outros que não aparentam desempenhar um papel causal nessa narrativa” (2008, p. 109). Ao recordar não a sucessão real de eventos, mas uma reconstrução dela, a mente dá uma aparência de razoabilidade à história e assim a torna mais explicável do que ela é.
No mesmo sentido, Kahneman afirma: “a mente que formula narrativas sobre o passado é um órgão criador de sentido. Quando um evento imprevisto ocorre, imediatamente ajustamos nossa visão de mundo para acomodar a surpresa”. Ele explica que, uma vez tendo adotado uma nova visão de mundo, a mente perde muito de sua capacidade de recordar em que costumava acreditar antes de mudar de ideia. Ao reconsiderar suas antigas crenças, “as pessoas lembram-se, em vez disso, de suas atuais – um caso de substituição – e muitas não conseguem acreditar que um dia acharam outra coisa. Kahneman chama esse processo de “viés retrospectivo” e alerta que ele “gera uma robusta ilusão cognitiva”. “O mundo faz muito menos sentido do que você pensa. A coerência deriva principalmente do modo como sua mente funciona” (2012, p. 253, 254, 70).
Kahneman descreve também o efeito que ele chama de “priming”: a exposição a uma ideia facilita a evocação de outras ideias relacionadas. “Como marolas num lago, a ativação se difunde por uma pequena parte da vasta rede de ideias associadas, cujo mapeamento ainda não foi possível”. Ele acrescenta ainda: “Ações e emoções podem
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O impacto de vieses cognitivos sobre a imparcialidade do conteúdo de Inteligência
ser primadas por eventos dos quais nem sequer se tem consciência”. Essas operações de memória associativa contribuem para um “viés de confirmação”, isto é, a mente tende a buscar validação daquilo que já conhece. Diante de uma pergunta, a mente testa a hipótese mediante uma busca deliberada por evidência confirmadora, em uma espécie de “estratégia de teste de positivo”. O viés confirmatório favorece a aceitação acrítica de sugestões e o exagero da probabilidade de eventos extremos e improváveis (2012, 69, 70, 109).
Contrariamente às regras dos filósofos
da ciência, que aconselham testar hipóteses tentando refutá-las, as pessoas (e os cientistas, às vezes), buscam dados que tenham maior probabilidade de se mostrarem compatíveis com as crenças
que possuem no momento (2012, p. 106).
Outro fator de geração de erros sistemáticos, segundo Kahneman, é a “heurística da disponibilidade”. As falhas ocorrem quando a mente recorre a lembranças afetivas e emocionais ao invés de pensar em ocorrências numéricas. A memória de eventos dramáticos recentes, como a queda de um avião, é mais disponível para influenciar o julgamento das pessoas sobre segurança do transporte aéreo do que estatísticas, por exemplo. “Um erro judicial que o afete vai minar sua fé na justiça mais do que um incidente similar sobre o qual você tenha lido em um jornal” (2012, p. 167). A mente elabora julgamentos baseados em emoções muito mais que em avaliação de dados. O viés da disponibilidade está na origem do fenômeno que os cientistas chamam de “cascata de disponibilidade”, uma cadeia de eventos autossustentável que começa com a divulgação de um fato menor pela imprensa que leva pânico ao
público, o que obriga o governo a tomar ações de larga escala. Essas ações causam ainda mais alarde e a reação pública torna- se um evento em si mesmo, o que gera mais cobertura midiática, mais preocupação e mais envolvimento, num ciclo que pode ser acelerado por organizações interessadas em manter um fluxo contínuo de notícias preocupantes. Nesse caso, ações concretas de interesse público têm de ser relegadas a segundo plano para dar lugar à atenção política sobre o sentimento coletivo de insegurança.
Vieses cognitivos: um risco para a Inteligência Estratégica
Pesquisas em Psicologia Cognitiva sobre percepção, memória e raciocínio demonstram limitações relacionadas à interferência de vieses cognitivos e subsidiam estudos na área de Inteligência sobre falhas de análise de diversos profissionais e serviços de Inteligência. Ofoco das pesquisas é entender o papel do analista ao coletar e processar material. Tversky e Kahneman (2012, p. 536) afirmam que “a confiança nas heurísticas e a prevalência de vieses não estão restritas aos leigos. Pesquisadores experientes também são propensos aos mesmos vieses – quando pensam intuitivamente”. Segundo eles, mesmo que pessoas “estatisticamente sofisticadas” evitem erros de julgamento em questões elementares, elas estão sujeitas a falácias em problemas mais intrincados e menos transparentes. Para Kahneman (2012, p. 65), inteligência elevada é diferente de racionalidade e não torna as pessoas imunes a vieses.
Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 13, dez. 2018 13
André Mendonça Machado
Heuer (1999, p. 52) afirma que, tendo estabelecido determinada programação mental em torno de um tema específico, o profissional de Inteligência tende a acoplar toda nova informação ao fortalecimento de uma argumentação lógica antiga. Uma vez que o analista disponha de informação suficiente para formar julgamento sobre um fato de interesse da Inteligência, a obtenção de mais dados geralmente não melhora a precisão da análise. Ao contrário, mais informação o torna mais seguro sobre seu juízo e o leva a se sentir excessivamente confiante e confinar a busca de dados em torno de uma operação de confirmatória. Além disso, o profissional tende a valer-se sempre das mesmas fontes, com as quais tem familiaridade e que acabam por reforçar seu modelo mental. Heuer acrescenta que analistas têm um entendimento imperfeito de qual informação realmente utilizam ao fazer seu julgamento. Eles não seriam, portanto, capazes de perceber até que ponto suas análises são determinadas por apenas alguns elementos dominantes, e não pela integração sistemática de todos os fatores acessíveis. Ao final, sua interpretação sobre os elementos integrados parecerá coesa, coerente e congruente, ainda que tenha sido fundamentada em frações incompletas e insuficientes. Emoutras palavras, os analistas não são conscientes do enviesamento de seus produtos.
Heuer exemplifica o efeito de ancoragem com o evento típico do analista que se muda para nova área de análise e assume a produção de conhecimentos já iniciada por seus antecessores. O que acontece é que mesmo quando o analista recém-chegado faz seu próprio julgamento e tenta revisá-lo com base em novas informações ou análise
mais profunda, normalmente ele não muda sua avaliação inicial suficientemente. A iniciativa do analista anterior serve como uma âncora a qual o profissional prende suas primeiras impressões. Para Heuer, o simples esforço de tomar consciência do problema de ancoragem não é um antídoto adequado. Em testes, os vieses cognitivos persistem mesmo depois que o sujeito é informado deles e instruído a evitá-los ou compensá-los (1999, p.151, 152).
Lowenthal explica que a ancoragem de modelos mentais dificulta a extrapolação para uma nova forma de enxergar um tema familiar. Ele apresenta um exemplo para ilustrar como a limitação crítica afeta a análise: durante os anos 1980, alguns analistas estadunidenses trabalhando sobre o Irã falavam de iranianos “extremistas” e “moderados”. Quando pressionados por seus colegas céticos a respeito das evidências sobre a existência de moderados, os analistas argumentavam que, se há extremistas, então devem haver moderados, numa aproximação ao padrão político reconhecível em seu próprio país. Lowenthal usa a expressão “clientismo” para descrever falha que ocorre quando os analistas se tornam tão imersos em seus temas a ponto de perder a capacidade de enxergar as questões com a criticidade necessária (2003, p. 93).
Herman partilha da mesma visão. Ele afirma que a Inteligência nunca vai entender países estrangeiros completamente e prever todas as suas ações. Há muitas falhas em antecipar um ataque iminente, mesmo quando há evidência suficiente. Isso seria explicado como uma rigidez cognitiva, isto é, a tendência humana de interpretar qualquer evidência à luz de preconceitos e de resistir
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O impacto de vieses cognitivos sobre a imparcialidade do conteúdo de Inteligência
a explicações alternativas (2006, p. 239).
Jones usa o caso dos erros do relatório da Comunidade de Inteligência estadunidense sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque, em 2002, para exemplificar o efeito da ancoragem. Para ele, o ponto de partida das análises foi o histórico de uso daquelas armas e a ocultação do desenvolvimento de novos programas relacionados ao assunto nos anos 1990, o que levou as agências de Inteligência à noção de que o Iraque ainda possuía armas químicas e biológicas e que pretendia expandir sua produção (2005, p. 47). O enviesamento cognitivo tornou os analistas resistentes a evidências contrárias e reativos a perspectivas alternativas à ideia de que o Iraque ainda era uma ameaça, indispostos a concederem atenção a fatos que desafiassem suas premissas lógicas ancoradas no passado. Para Jones, outros fatores, como pressão política, dificuldade de acesso a fontes confiáveis e urgência também contribuíram para o erro; no entanto, nenhum organismo envolvido no processo foi capaz de reconhecer a influência do viés cognitivo nos erros de julgamento que levaram a uma guerra (2005, p. 34).
Esse exemplo ilustra o viés de confirmação descrito por Kahneman. Dados compatíveis são imediatamente integrados, independentemente de sua confiabilidade. Toda informação que contribuía para fortalecer o julgamento de que o Iraque possuía armas de destruição em massa, por mais frágil que fosse, encontrava encaixe em uma figura concebida de antemão na mente dos analistas. Kahneman prognosticou: “A essência da mensagem é a história, que está baseada em qualquer informação disponível,
mesmo se a quantidade de informação é mínima e sua qualidade é ruim” (2012, p. 163). Não interessa se a história é verdadeira, o importante é que tenha coerência.
Como exemplo de impacto do viés de disponibilidade na área de Inteligência estratégica, Miranda Filho cita o exemplo da formação discursiva e ideológica criada pelos Estados Unidos da América (EUA) após os atentados de 11 de Setembro,
[...]em que se divulgou a noção de que o terrorismo era a nova ameaça global e que todos os países deveriam se juntar
aos EUA nessa cruzada. Os discursos foram lançados por meio de artigos acadêmicos, principalmente nos temas Ciência Política, Defesa e Inteligência, na imprensa de forma massiva e
generalizada, nos discursos oficiais de autoridades, enfim, a partir de qualquer comunicação que tratava da segurança dos países. [...] Praticamente não houve vozes dissidentes. Houve aqui o que se
chama de cascatas de disponibilidade, ou seja, um evento é exagerado pela imprensa e pelo público a ponto de se tornar a única coisa sobre a qual se fala, influenciando a definição de políticas
públicas (2016, p. 62).
Vieses cognitivos na produção do conhecimento de Inteligência: a imparcialidade no assessoramento ao processo decisório
Segundo Heuer, os vieses cognitivos são considerados intratáveis, isto é, o ser humano não tem como se desfazer deles por se constituírem em ferramenta para que a mente consiga interagir com grandes volumes de informações. É esse mecanismo
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André Mendonça Machado
mental que permite ao profissional de Inteligência selecionar e classificar de forma rápida e sistemática as informações de interesse de seu campo de análise. No entanto, Heuer explica, diferentemente do que se pensa, o analista não constrói uma imagem como quem monta um quebra- cabeças, coletando e encaixando as pequenas peças de informações. O que ocorre é que ele encontra peças variadas que caberiam em diferentes figuras e, ao invés de montar uma figura com as peças encontradas, forma primeiro uma imagem e depois seleciona as peças que podem completá-la. Assim, informações relevantes são descartadas por não se encaixarem no modelo mental. Preconceitos e presunções determinam a forma de perceber e processar as novas informações (1999. p. 170, 62).
Platt descreve a produção de conhecimentos, núcleo da Atividade de Inteligência, como um processo essencialmente intelectual e cita “um famoso mestre de Oxford” que dizia que “fatos nada significam” (1974, p. 309). Com isso, ele quer explicar que um fato não tem valor para a Inteligência “a não ser relacionado com outros fatos, ou posto em destaque o seu significado” (1974, p. 78). Portanto, em razão de sua natureza fundamentalmente representativa e analítica, esse processo está sujeito à interferência de vieses cognitivos. Segundo a Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência (DNAI), o processo do conhecimento:
[...] indica a passagem da sensibilidade para as representações mentais, que
se desenvolvem das sensíveis para as
conceituais, em um movimento de formas sensíveis ou empíricas para formas racionais ou abstratas de conhecimento. A representação sensível conecta a
sensibilidade à abstração (BRASIL, 2016, p. 51).
Ainda segundo a Doutrina (BRASIL, 2016), processamento é a fase da produção em que “os conhecimentos e dados obtidos são submetidos a métodos analíticos que permitem selecionar suas partes, relacioná-las, integrá-las e produzir inferências”. A “passagem da sensibilidade para as representações mentais”, na qual “os conhecimentos e dados obtidos” são submetidos a “métodos analíticos”, corresponde, na prática, aos procedimentos mentais que atribuem significado a fatos de interesse da Atividade de Inteligência e deles extraem conclusões, para transformá-los em conteúdo de Inteligência a ser difundido aos decisores. Portanto, o cerne da produção de conhecimento – a construção de uma representação racional – é um processo mental do qual resultará o produto final da Inteligência sujeito à interferência de vieses cognitivos. A Doutrina engendra também um “ciclo do conhecimento”, onde “a Atividade condiciona o pensamento, que elabora o conhecimento, o qual, por sua vez, orienta o pensamento, que dirige a ação”. O processo de construção do conhecimento encadeia-se em formas racionais que incluem a ideia, o juízo e o raciocínio, cuja articulação pode gerar formas ainda mais sofisticadas como a hipótese, a tese e a teoria. Assim, como elemento intermediário do ciclo e gerador do conhecimento de Inteligência, o pensamento racional ameaçado por vieses cognitivos torna ainda mais imperioso o tratamento desse risco.
Verifica-se também que a Doutrina idealiza a produção de um conteúdo de Inteligência neutro e livre de direcionamentos tendenciosos (BRASIL, 2016, p. 55),
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O impacto de vieses cognitivos sobre a imparcialidade do conteúdo de Inteligência
condição para a entrega de um produto isento e objetivo ao usuário final. Rosito (2006, p. 24) lembra-nos, no entanto, de que a abordagem da realidade pelo analista de Inteligência pode ser descrita como o tipo de experiência vivida por esse profissional no contato com o fenômeno acompanhado.
Assim sendo, os fatos analisados não podem ser dissociados daquele que produz o conhecimento. Quando a
mente posiciona-se perante a verdade, o que de fato ocorre é um processo ativo de autorregulação entre uma pessoa, seus conhecimentos pré-existentes ( a priori) e um novo fato que se apresenta.
O quanto essa pessoa conhece, o que já viveu, o que sente, e o vocabulário de que dispõe, estão entre as variáveis inerentes ao processo de produção de um Conhecimento acerca desse novo fato. O
Relatório de Inteligência traz consigo o dado, agregando a este as experiências distintas do observador (a fonte, o agente operacional) e do analista, transferindo- as para o processo decisório do usuário
final.
Segundo a Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência (DNAI), a imparcialidade “consiste em abordar o assunto sem interesses e ideias preconcebidas que possam distorcer os resultados dos trabalhos” (BRASIL, 2016). O Planejamento Institucional da Abin (BRASIL, 2018) explica a imparcialidade como “isenção, no exercício da Atividade de Inteligência, de juízos de valor decorrentes de interesses ou convicções pessoais de caráter filosófico, ideológico, religioso, político, societário ou corporativo”. Essas formulações objetivam advertir para a necessidade de que o produto final do processo de produção do conhecimento de Inteligência esteja livre de vieses de qualquer natureza. A DNAI demonstra preocupação com interferências
externas quando afirma que “o produtor deve proceder de tal maneira que os conhecimentos produzidos sejam úteis e confiáveis ao usuário, sem, no entanto, descurar do princípio da imparcialidade” (BRASIL, 2016, p. 34). Nessa passagem, a Doutrina alerta para o fato de que há um risco, para a organização, no esforço de atingir um lugar de prestígio no assessoramento: tentar cativar o usuário pode comprometer a isenção do conteúdo de Inteligência. Emoutras palavras, há um limite de proximidade entre produtor e usuário de Inteligência que deve ser obedecido a fim de que a atividade de assessoramento atenda não a interesses organizacionais ou políticos, mas seja direcionada ao Estado “e apenas para os propósitos legitimados democraticamente”. “Rejeita-se o uso da Atividade de Inteligência como instrumento de particulares organizados em classes e grupos”.
Kent (1967, p. 173) afirma que “não há nada mais importante nas informações do que as relações adequadas entre o seu pessoal e as pessoas que utilizam o produto de seu trabalho”. Ele adverte que essas relações não ocorrem naturalmente, mas “são estabelecidas por meio de um grande esforço consciente e persistente, e é provável que desapareçam se esse esforço for relaxado”. Por relações adequadas, o autor explica ainda que as informações “devem estar suficientemente próximas da política, planejamento e operações para obter o máximo de orientação, mas não tão próximas a ponto de perderem sua objetividade e integridade de julgamento”. Isto é, a proximidade excessiva com o usuário final tende a comprometer o princípio da imparcialidade do conteúdo de
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Inteligência. Em 1949, Kent já antecipava o que pesquisadores da psicologia analítica e da produção do conhecimento viriam a chamar, décadas mais tarde, de viés cognitivo:
Uma equipe de informações habituada a esforçar-se para uma análise raciocinada
e imparcial, para produzir algo de valor, tem suas dificuldades com os pontos de vista, posições, opiniões pessoais e linhas. Acima de tudo, ela é constituída de homens cujos padrões de raciocínio provavelmente colorirão suas hipóteses, e cujas hipóteses coloridas, provavelmente se tornarão uma conclusão mais atraente do que o demonstram as evidências. (...) O policiamento de suas inevitáveis irracionalidades é uma tarefa que lhes ocupa as vinte e quatro horas do dia. Mesmo assim nem sempre são bem sucedidos (p. 189).
Kent demonstra preocupação com a parcialidade quando o produtor do conhecimento se torna tão próximo do utilizador que passa a ser controlado por este. Nesse caso, ocorre uma modelagem cognitiva: a produção de conhecimento começa a ancorar-se nas expectativas do usuário em ver sua linha política executiva ser apoiada pela organização de Inteligência.
[...] se as informações aparecem sempre
com novidades em desacordo com a política do órgão de execução, não posso
imaginar como contarão com seu apoio
indefinidamente. Não posso deixar de pensar que [...] as informações serão diretamente envolvidas pela política e
que tornar-se-ão fanáticos apologistas de uma dada política, em lugar de serem
seu analista imparcial e objetivo (p.190).
No mesmo sentido, Afonso destaca que “a proximidade exacerbada entre analista e decisor pode criar distorções analíticas “[...] caso [o oficial de Inteligência] troque a imparcialidade inerente ao seu trabalho
pela admiração por seu interlocutor”. A ancoragem na ideologia do usuário gera um viés confirmatório crônico na mente do profissional e a elaboração de conhecimento redunda em um emparelhamento empírico de produção.
A falta de eventuais contraposições entre usuário e produtores cria uma barreira que simplifica o ciclo de Inteligência de uma maneira tão perversa que pode inspirar o policymaker a cometer erros graves. Devido à poderosa confiança que se origina da similaridade entre os argumentos dos decisores e da Inteligência, potenciais questionamentos às análises, contra ou a favor de informações que fundamentam uma argumentação, permanecerão indefinidamente latentes. Nesse contexto, informações que necessitem de agregação de valor (confirmação) carecerão de
atenção, o que comprometerá todo o resultado final da confecção do produto
de Inteligência. Criar-se-á um círculo vicioso difícil de ser quebrado (2006, p. 15).
Em sua ânsia de atender prontamente ao usuário, os analistas produzem conhecimento na contingência de um viés de expectativa e a organização corre o risco de incorrer em seu erro mais grave, o assessoramento com potencial de dano ao processo decisório nacional.
Mecanismos de controle da imparcialidade em face dos vieses cognitivos
Os vieses cognitivos levam o analista a incorrer em erro, seja aceitando como verdadeira uma informação falsa, seja descartando como falsa uma informação verdadeira. Esse erro é um tipo de risco operacional que incide sobre o conteúdo
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O impacto de vieses cognitivos sobre a imparcialidade do conteúdo de Inteligência
de Inteligência tanto em razão de uma falha na geração desse conhecimento quanto em razão de uma omissão no controle do processo de produção. No esforço de atender ao princípio da imparcialidade, as agências de Inteligência dependem da adoção de mecanismos capazes de identificar e reduzir em seu produto final a incidência dos erros decorrentes de vieses cognitivos. É tarefa dos envolvidos no processo de produção de conhecimento priorizar e definir respostas aos riscos e monitorar as ações de tratamento escolhidas. Quando não detectado e tratado pelo gestor, o erro redunda ainda em um risco de imagem para a organização pela possibilidade de comprometimento da qualidade do assessoramento.
Um dos pilares do tratamento do risco inerente aos vieses cognitivos é a estruturação de capacitação voltada para o ato de pensar. Para os gestores das agências de Inteligência que querem lidar com as limitações inerentes do processo mental dos analistas, Davis assinala que é necessário estabelecer um ambiente organizacional que promova e recompense o tipo de raciocínio crítico que não se ampare apenas nas primeiras hipóteses cabíveis, mas que continuamente reconsidere a fundo um conjunto de hipóteses plausíveis não admitidas no início da interpretação (1999, p. 24). Esse ambiente deve começar pelo treinamento dos profissionais de Inteligência. Segundo Heuer (1999, p. 4), analistas de inteligência devem entender a si mesmos antes que possam entender os outros. O treinamento deve aumentar a autoconsciência sobre como os oficiais de Inteligência percebem o mundo e fazem julgamentos analíticos. Eles devem ser capacitados também na superação desses problemas. O que ocorre
geralmente é que há alguma instrução em técnicas metodológicas ou tópicos temáticos, mas pouco treinamento dedicado ao ato mental de pensar ou analisar.
No diagnóstico de Heuer (1999, p. 5), as organizações assumem, incorretamente, que analistas sabem como analisar. Alguns gestores entendem que, uma vez que o profissional admitido na carreira de Inteligência já tem formação de nível superior, a organização de Inteligência não tem necessidade de ensiná-lo a escrever relatórios, mas deve apenas instruí-lo nos temas de interesse da atividade. No entanto, a questão a ser enfrentada não é ensinar a escrever, mas ensinar a pensar a Inteligência, uma vez que não há formação específica na academia ou atividade no mercado de trabalho que prepare um profissional para produzir relatórios de assessoramento em Inteligência Estratégica. Platt (1974) explica: “Talvez seja mais correto dizer-se que, da forma como praticamos hoje em dia, a Inteligência tem o talhe de uma profissão ao invés de ser uma profissão” (p. 286, grifos do autor). Teixeira acrescenta que uma característica essencial do profissional de Inteligência é a:
[...] flexibilidade de raciocínio, pois, ao se ter em conta as transformações de toda natureza pelas quais o mundo
está passando, é fundamental que o profissional tenha capacidade de reavaliar posturas, reconsiderar ideias pré-concebidas e ter um pensamento bem articulado com a realidade (2006, p. 33).
No mesmo sentido, Heuer aponta que o problema é como garantir que a mente permaneça aberta a interpretações alternativas em um mundo em rápida transformação. Para ele, os analistas que mais sabem sobre um assunto são os que mais
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têm a desaprender. Como exemplo, ele cita a Queda do Muro de Berlim: especialistas alemães tiveram que ser estimulados a aceitar o significado das mudanças dramáticas na direção da reunificação da Alemanha Oriental com a Ocidental. A desvantagem de uma programação mental, explica Heuer, é que ela pode controlar a percepção até o ponto em que um especialista experiente pode estar entre os últimos a ver o que realmente está acontecendo quando confrontado com uma grande mudança de paradigma (1999, p. 5). Mas o que se verifica na prática é que os analistas mais imersos em um processo viciado por vieses cognitivos e mais resistentes a mudanças são, paradoxalmente, aqueles mais investidos de autoridade e, em geral, detentores da última palavra na produção do conteúdo de Inteligência. Oproblema torna-se mais grave quanto mais especializado for o analista, uma vez que a preocupação institucional com a qualidade de sua produção diminui.
Platt avalia que, quanto a conhecimento técnico e métodos, a Inteligência aproxima-se dos demais campos de estudo, mas qualidades específicas devem ser desenvolvidas internamente nas organizações (1974, p. 286). Essa visão corrige a ideia corrente de que o profissional aprende a produzir Inteligência à medida que a produz. O que ocorre na prática é justamente o oposto: o profissional que se inicia mal orientado tende a reforçar vícios, aprofundar erros e produzir conteúdos cada vez mais enviesados e distantes das necessidades do assessoramento. Assim, as agências devem desenvolver e aplicar sistematicamente treinamento que examine os processos de pensamento e raciocínio envolvidos na análise de Inteligência. O currículo
básico obrigatório do profissional de Inteligência pode se beneficiar de iniciativas de aprimoramento como treinamento em técnicas de análise estruturada, verificação da qualidade dos dados e brainstorming; conhecimentos sobre efeitos da percepção sobre o julgamento e sobre avaliação e validação de premissas, argumentos e hipóteses; e estudos em Linguística Geral e Aplicada, Análise do Discurso, Interferência Externa e Contrapropaganda. Estudos de doutrina podem aprofundar pesquisas sobre a influência de vieses cognitivos em cada uma das fases da Metodologia da Produção do Conhecimento (Planejamento, Reunião, Análise, Síntese e Interpretação), uma vez que todo o processo está sujeito a esse risco. Esse conjunto de disciplinas compõe o acervo de treinamento básico a ser aplicado ao profissional de Inteligência antes que ele seja considerado apto a se engajar no processo de produção de conhecimento.
A gestão do processo de produção do conhecimento é outro importante pilar na construção de um modelo de proteção contra o risco do enviesamento cognitivo do conteúdo de Inteligência. Davies (1999, p. 24) pontua que é necessário promover o desenvolvimento de ferramentas para auxiliar os analistas na avaliação de informações: em questões complexas, eles precisam de ajuda para melhorar seus modelos mentais tanto quanto precisam de novas informações. Diversas ferramentas de trabalho são úteis à redução do risco tratado aqui. A adoção de modelos de trabalho em grupos horizontais, onde os conteúdos são processados e integrados em equipe antes de serem submetidos à revisão, auxiliaria na redução da incidência de enviesamento cognitivo na produção de conhecimento.
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O impacto de vieses cognitivos sobre a imparcialidade do conteúdo de Inteligência
Em relação à revisão, uma técnica capaz de beneficiar a qualidade do produto final é a “revisão por pares”. Nesse sistema de verificação, o conteúdo não é revisado apenas por chefias, em um modelo vertical, mas submetido à apreciação de colegas fora da equipe de produção, conhecedores ou não do tema tratado, cuja identidade pode ser ou não reciprocamente conhecida. Outro recurso de identificação de vieses cognitivos é a implantação de um sistema de armazenamento e busca que garanta a disponibilidade de informações processadas pela agência de Inteligência não utilizadas em seus produtos finais. Esse acesso permitiria ao analista confrontar sistematicamente o material aproveitado com o material descartado, a fim de detectar e reduzir a incidência de efeitos de ancoragem e vieses de confirmação. Considerando-se que essas medidas estão relacionadas às etapas da metodologia da produção de conhecimentos, iniciativas de reestruturação e normatização de procedimentos metodológicos tendem a repercutir de forma sistêmica nos produtos internos e externos da organização.
Mais uma forma de ajudar os oficiais de Inteligência a tomarem consciência do processo pelo qual fazem análise é a releitura periódica do conteúdo produzido em cada unidade organizacional ou área temática. Heuer (1999, p. 5) explica que até há pouco tempo prevalecia a noção de que para perceber eventos com precisão era necessário apenas olhar para os fatos e purificar-se de todos os prejulgamentos. No entanto, hoje, há uma compreensão mais ampla de que analistas não abordam suas tarefas com mentes vazias, mas com um conjunto de suposições sobre como os eventos normalmente acontecem na
área pela qual são responsáveis. A análise retrospectiva dos registros de produção sobre determinado assunto acompanhado por um grupo de analistas ao longo de certo período permite reavaliar o processo de construção dos conhecimentos. Com distanciamento histórico, os modelos mentais dominantes e os vieses cognitivos incorporados ao conteúdo de Inteligência podem ser identificados e rastreados e os analistas podem ser confrontados com seus próprios preconceitos e pré-julgamentos.
Outro suporte à detecção e redução de vieses cognitivos é a gestão da independência das agências de Inteligência em relação aos decisores. Shulsky (2002, p. 139) adverte que algum mecanismo deve assegurar que toda informação relevante, positiva ou negativa, esteja disponível para o consumidor de Inteligência, mesmo que o conhecimento entregue contrarie uma visão preestabelecida ou uma política em curso empreendida pelo mandatário. Oautor explica que o papel do gestor é garantir que os profissionais de Inteligência, individualmente considerados, sintam-se protegidos de constrangimentos ou ameaças que possam induzi-los a produzir conclusões mais palatáveis ao usuário final. A única salvaguarda dos analistas é o amparo das chefias.
“O que a Inteligência sabe sobre isso?” Essa é a pergunta que mais interessa à agência ver formulada no alto escalão do processo decisório nacional. Uma das características diferenciadoras do relatório de Inteligência em relação a outros produtos de assessoramento do poder decisório é seu objetivo de ser o único documento a buscar o interesse coletivo da sociedade e do Estado brasileiros, sem apoiar ou atacar
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pontos de vista sectários defendidos por grupos econômicos, partidários, filosóficos, ideológicos, religiosos, políticos, societários ou corporativos. Diferentemente, por exemplo, de editoriais de jornais, discursos de autoridades, artigos acadêmicos e teses jurídicas e econômicas, só o conteúdo de Inteligência tem como objetivo apresentar uma perspectiva de isenção em relação aos temas estratégicos nacionais. A imparcialidade como elemento de excelência do produto também sugere ao decisor que apenas o conteúdo de Inteligência é capaz de auxiliá-lo a identificar tentativas de ingerência adversa no processo decisório, como interferência externa ou contrapropaganda.
Conclusão
A Psicologia Cognitiva tem se valido de avanços no estudo da mente para tentar explicar como o homem captura e processa informações, faz julgamentos e toma decisões. À Inteligência Estratégica cabe aplicar esses estudos para o aprimoramento de sua atividade. Uma contribuição fundamental foi dada pela Ciência no século XX ao demonstrar que o homem é bem menos racional do que se imaginava. Vieses cognitivos, muitos deles ainda escassamente descritos, interferem em funções até há pouco tempo consideradas lógicas e racionais. É tarefa do profissional de Inteligência verificar em que medida esse fenômeno afeta o assessoramento prestado
ao processo decisório nacional e como lidar com ele. No atual tempo de incertezas, as agências de Inteligência devem ser capazes de elaborar essa reflexão. Quão imparcial é meu produto? Quanto pode o mandatário confiar em meu trabalho? Como tratar um velho problema com novas ferramentas?
Erradicar os vieses cognitivos é impossível, mas seus efeitos sobre a imparcialidade do conteúdo de Inteligência podem ser minimizados. Diversos instrumentos de gestão têm potencial para contribuir com boas respostas se o risco for tratado de forma direta e sistemática. Inicialmente, é necessário conhecer esses vieses e a forma como interferem na produção do conhecimento. É necessário também que o profissional de Inteligência tome consciência de seu lugar no mundo – sua história pessoal, inserção social, formação educacional e profissional, inclinações ideológicas e preferências políticas e filosóficas – e entenda como isso afeta seu trabalho. Finalmente, cabe à agência empregar procedimentos para opor-se a danos potenciais dos vieses sobre o conteúdo de Inteligência, tanto na formação dos profissionais quanto na gestão do processo de que resultarão os conhecimentos. O resultado desse investimento contribui para que o produto final da agência permaneça útil e para que a Inteligência se torne imprescindível ao processo de tomada de decisões nacional.
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O impacto de vieses cognitivos sobre a imparcialidade do conteúdo de Inteligência
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24 Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 13, dez. 2018
OIMPACTO DE BIG DATA NAATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA
Paulo M. M. R. Alves *
Resumo
A rápida evolução tecnológica implica a produção de um volume massivo de dados (big data). Essa realidade impõe à atividade de Inteligência a necessidade de aprimoramento contínuo de seus métodos e processos. O artigo discute o impacto de big data na Inteligência e analisa três aspectos do mundo de big data que afetam o ambiente de trabalho dessa atividade: o excesso de informação, o incremento na capacidade de predição fornecida pelos algoritmos e os riscos democráticos ensejados pela prevalência desses algoritmos. Esses três aspectos são discutidos e apresentados como evidências da imprescindibilidade de apropriação das técnicas e ferramentas de big data para que a Inteligência cumpra com eficácia as atribuições que recebe da sociedade. APolítica Nacional de Inteligência é invocada como balizador da atividade e o investimento em tecnologias aplicadas para tratamento e análise de grandes quantidades de dados está em consonância com os preceitos preconizados no documento.
Palavras-chaves: big data; análise de Inteligência; inteligência artificial; capacidade de predição.
BIG DATA IMPACT IN THE INTELLIGENCE ACTIVITY
Abstract
A massive volume of data (big data) is produced as a result of the rapid technological evolution. This reality imposes on the intelligence activity the need for continuous enhancement of its methods and processes. This article discusses the impact of big data in Intelligence and analyses three aspects of the big data world which affect the working environment of this activity: the information overload, the algorithms increased prediction capability and the risks to democracy sparked by the prevalence of theses algorithms. It also debates the balance between the usage of human resources and artificial intelligence. These aspects are discussed and presented as evidence of the essential need for a solid grasp of the big data tools and techniques by the intelligence community in order to effectively carry out the mandate it receives from the society. The National Intelligence Policy is invoked as a guiding parameter of the intelligence activity and the investment in technologies applied to the treatment and analysis of big data abide by the principles stated in that legal document.
Keywords: big data; intelligence analysis; artificial Intelligence; prediction capability.
* Oficial de Inteligência
Artigo recebido em julho/2018
Aprovado em setembro/2018
Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 13, dez. 2018 25
Paulo M. M. R. Alves
Introdução
A sociedade contemporânea vive na chamada Era da Informação, caracterizada por uma quantidade de dados disponíveis não apenas descomunal, mas ainda continuamente crescente. A esse grande volume de dados existente convencionou- se chamar big data1. Trata-se de uma nova e irreversível realidade tecnológica que afeta a sociedade e o Estado de inúmeras formas. Esse novo paradigma de abundância informacional impacta diretamente a atuação de serviços de Inteligência, que têm a razão de sua existência fundada na necessidade de informação que os Estados nacionais apresentam para fins de tomada de decisão.
Segundo Jean-Francois Rischard (2003 apud STEELE, 2008), os Estados nacionais são os maiores empreendimentos constituídos pelo homem. Gerir estas estruturas implica uma quantidade incessante de tomada de decisões. A Atividade de Inteligência tem, na sua gênese, o propósito primário de auxiliar o processo decisório. Quando um Estado procura conhecer estratégias e planos militares ou comerciais de outro Estado ou uma empresa espiona uma concorrente em busca de informações antecipadas sobre um novo produto, ambos têm um objetivo em comum: buscar informações privilegiadas que auxiliem a tomada de decisão. A Doutrina Nacional
da Atividade de Inteligência (DNAI) afirma que a Inteligência se destina a assessorar a autoridade governamental, no sentido de permitir-lhe formular opções para a tomada de decisão. Para que a Inteligência exerça adequadamente sua atribuição de assessorar, produzindo conhecimentos úteis, confiáveis e oportunos é necessário um processo estruturado de produção de conhecimentos.
A sociedade contemporânea, no entanto, impõe novos desafios à produção de conhecimentos e ao assessoramento ao Processo Decisório Nacional (PDN). O macroambiente da Inteligência é indelevelmente marcado pela emergência da sociedade do conhecimento no contexto da Era da Informação. O mundo moderno amplia o papel da Inteligência ao mesmo tempo em que impõe o desafio de reavaliação contínua, como reconhece a Política Nacional de Inteligência (PNI):
No mundo contemporâneo, a gestão
dos negócios de Estado ocorre no curso de uma crescente evolução tecnológica, social e gerencial. [...] Nessas condições, amplia-se o papel da Inteligência no assessoramento ao processo decisório
nacional e, simultaneamente, impõe-se aos profissionais dessa atividade o desafio de reavaliar, de forma ininterrupta, sua
contribuição àquele processo no contexto da denominada “era da informação”.
(BRASIL, 2016)
O presente artigo pretende abordar, sob
1 Há diversas definições possíveis para o termo, algumas enfatizando a quantidade massiva de dados, outras enfatizando técnicas e ferramentas de análise desses dados. Neste artigo, demos preferência a primeira abordagem, adotando a definição dada pelo Dicionário de Oxford: “conjunto de dados extremamente amplo que podem ser analisados computacionalmente para revelar padrões, tendências e associações, especialmente relacionados ao comportamento e as interações humanas”. Disponível em: <//en.oxforddictionaries.com/definition/big_data>. Acesso em: 15 Nov 2017. Sobre big data, ver o artigo de Gil Press 12 big data Definitions: What’s Yours?. Disponível em: <www.forbes.com/sites/ gilpress/2014/09/03/12-big-data-definitions-whats-yours/>. Acesso em: 15 Nov 2017.
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O impacto de big data na atividade de Inteligência
uma perspectiva multidisciplinar e no plano estratégico, três aspectos do cenário contemporâneo de big data que afetam decisivamente os ambientes interno e externo dos serviços de Inteligência. Esses aspectos constituem evidências do que se pretende demonstrar: a imprescindibilidade do domínio de técnicas e ferramentas de big data para a eficácia da atividade de Inteligência no mundo atual. Para este fim, emprega uma revisão bibliográfica que proporciona abundantes exemplos que ilustram o impacto de big data na atividade de Inteligência. O primeiro aspecto a ressaltar é o vertiginoso crescimento da quantidade de informações disponível, fenômeno que implica sobrecarga de informações (information overload) para o analista e para o decisor, afetando diretamente o processo decisório. Umsegundo aspecto que impacta a Atividade de Inteligência é a possibilidade de utilizar a enorme massa de dados disponível para identificar padrões e, possivelmente, antecipar tendências. Por fim, outro aspecto merecedor de atenção é a capacidade que as novas tecnologias dão a um pequeno número de empresas e Estados de manipular opiniões e, potencialmente, populações inteiras em direção a determinada ideia ou sentimento.
Excesso de informação
Alvin Toffler, em seu livro A Terceira Onda (1980), alerta para o advento de um período pós-industrial, iniciado ainda nos anos de 1950, chamado de Era da Informação. Mas foi com o surgimento da World Wide Web (origem do famoso acrônimo “www”), agregando o hipertexto à rede, no início da década de 1990, que a internet começou a popularizar-se e efetivamente deixar os
meios militares e acadêmicos para conectar o mundo. Também nessa década surgem os primeiros buscadores e indexadores de páginas web – como o Google, em 1998 –, um primeiro indício de aceleração no ritmo de crescimento da quantidade de informações.
Em meados da década de 2000, alguns autores acreditavam que o crescimento das fontes abertas (OSINT – Open Source Intelligence) iria facilitar o trabalho dos órgãos responsáveis pela atividade e traria uma significativa redução de custos (AFONSO, 2006). Já se vislumbrava, à época, que a inundação de dados gerada pela “democratização da informação”f e pela popularização das tecnologias da comunicação aumentaria a carga sobre decisores (FARIAS apud. AFONSO, 2006).
A sobrecarga de informação (TOFFLER, 1970) tem ocasionado dificuldades aos órgãos de Inteligência. Eles são, frequentemente, acusados de possuírem os dados e não serem capazes de fazer as correlações necessárias para prevenir uma ação adversa. Essa foi a tônica das críticas à comunidade de Inteligência americana após os atentados de 11 de Setembro de 2001 no World Trade Center, em Nova Iorque (AFONSO, 2006). Kissinger (2004) afirma que a causa da maior parte das falhas da Inteligência não se encontra na inadequação da coleta ou coordenação entre os órgãos, mas na etapa de avaliação (assessment) das informações.
Na França, uma comissão parlamentar estabelecida para examinar as falhas de Inteligência do país identificou que as agências estavam coletando informação,
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Paulo M. M. R. Alves
mas não conseguiam “ligar os pontos” (SIMCOX, 2016). No Reino Unido, documentos vazados por Edward Snowden mostraram que os oficiais de Inteligência britânicos estavam preocupados com o excesso de informações (GALLAGHER, 2016). Em relatório secreto, advertiram que o MI5 era capaz de coletar mais dados do que era capaz de analisar e que isso poderia levar a graves falhas de Inteligência que poderiam, potencialmente, colocar vidas em risco. Um estudo ultrassecreto de 2009 vazado sobre o programa de vigilância eletrônica PRESTON, do GCHQ (Government Communications Headquarters) britânico, mostrou que, em um período de 6 meses, apenas 3% dos dados interceptados foram revisados pelas autoridades (GALLAGHER, 2016). O número chamou a atenção dos profissionais porque o PRESTON não é um programa de interceptação em massa, mas focado apenas em suspeitos conhecidos. Se boa parte das comunicações de alvos já identificados estava sendo ignorada, muita informação crucial estava sendo perdida.
Com efeito, a quantidade de dados disponíveis aumenta em taxas superiores ao crescimento demográfico humano. O universo digital dobra a cada dois anos (EMC, 2014). Postula-se, portanto, que nenhuma organização será capaz de lidar com esse incremento no volume de dados por meio da contratação de novos profissionais para processá-los. Um serviço de Inteligência, assim como qualquer outra organização, que tentasse semelhante expediente estaria fadado a tamanho inchaço de seus quadros que o tornaria ingerenciável. Ademais, restrições orçamentárias impõem limites evidentes a esse hipotético curso de ação.
Essa realidade apresenta um grande desafio para a Atividade de Inteligência. Por um lado, há mais dados disponíveis do que seus analistas são capazes de processar e transformar em conhecimento relevante. Por outro, não considerar o conjunto inteiro de dados torna o produto de Inteligência menos completo, por não considerar todas as possibilidades diante de um determinado problema. Gallagher (2016) lembra que, nesse contexto, há real possibilidade de que um serviço de Inteligência não perceba indícios de uma ameaça à segurança nacional, por exemplo.
A tendência ao crescimento do volume de dados não deve arrefecer nos próximos anos. Ao contrário, o advento da Internet das Coisas (IOT, sigla em inglês para Internet of Things) tende a aumentar drasticamente o número de dados brutos disponíveis. Os equipamentos eletrônicos modernos – televisores, câmeras de segurança, geladeiras, alarmes e outros – estão migrando para um paradigma de conectividade no qual todos se tornaram sensores, produzem dados e estão conectados na internet.
Se o crescimento da quantidade de dados tende a continuar, mas não é possível aumentar na mesma medida a capacidade de processamento humano desses dados e o não processamento leva a um conhecimento menos completo, como os serviços de Inteligência podem lidar com isso e SE manterem relevantes nesse mundo dominado pelo big data? O relatório vazado do MI5 oferece o caminho: pessoas, processos e tecnologia.
Primeiramente é necessário mudar o perfil do profissional de Inteligência (BESSA,
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O impacto de big data na atividade de Inteligência
2003; AFONSO, 2006). Afastando- se do estereótipo da cinedramaturgia hollywoodiana, as agências de Inteligência devem procurar selecionar e/ou formar verdadeiros trabalhadores do conhecimento (knowledge workers). É necessário que esse profissional trabalhe pautado por processos claros e bem definidos. Ele deve, desde o início de sua formação, estar inserido em um contexto de big data, no qual conhece as ferramentas disponíveis, sabe qual o seu papel na produção do conhecimento e segue uma metodologia apropriada para a Atividade de Inteligência.
Navegar pelas quantidades crescentes de dados, separar a informação dos ruídos que a acompanham e filtrar as frações significativas das irrelevantes têm se tornado um desafio cada vez maior para esses órgãos. A solução parece estar em mudar o paradigma de “o analista encontrar o dado” para “o dado encontrar o analista” (IBM, 2013). A análise automatizada de grandes volumes de dados (Big Data Analytics) potencializa a capacidade do profissional de Inteligência liberando-o de tarefas repetitivas e direcionando seu trabalho para áreas em que a intervenção intelectual humana é realmente essencial (IBM, 2013).
Antes de elaborar uma análise sobre determinada conjuntura política, por exemplo, o analista irá comumente dispender enorme quantidade de tempo reunindo material e separando o que considera significativo para o relatório a ser desenvolvido. Se ele puder treinar uma ferramenta de inteligência artificial (IA) para coletar das fontes corretas e filtrar a relevância segundo critérios definidos, o trabalho inicial de reunião e catalogação de
material será feito de forma automatizada e quase instantânea. Dessa forma, o profissional de Inteligência poderá aplicar mais do seu tempo escasso na fase de análise, sem desperdiçá-lo com leituras de baixa relevância.
Segundo Jani (2016), o emprego de ferramentas de inteligência artificial pode trazer ao menos três benefícios ao trabalho analítico da comunidade de Inteligência:
• Automação da coleta de dados
• Redução do tempo de processamento na análise de estruturas de dados complexas
• Refinamento dos resultados para apresentar apenas os principais pontos que conduzam a uma tomada de decisão efetiva
Reconhecendo esses benefícios e percebendo a necessidade de ampliar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico voltado às necessidades específicas da comunidade de Inteligência, os Estados Unidos estabeleceram, em 2006, a IARPA (Intelligence Advanced, Research Projects Activity) . A instituição lidera ou financia projetos de pesquisas tecnológicas inovadoras que atendam às necessidades dos órgãos de Inteligência do país. Apresenta quatro principais focos de pesquisa:
• Análise: maximizar o discernimento dos grandes volumes de dados coletados de modo oportuno;
• Inteligência antecipatória: desenvolver tecnologias que reduzam
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a incerteza e provejam aos tomadores de decisão predições acuradas de eventos relevantes para a segurança nacional;
• Coleta: aprimorar o valor dos dados coletados de todas as fontes; e
• Computação: segurança em ambientes hostis, detecção de ameaças e computação quântica.
Observando os campos de pesquisa acima, fica patente a alta prioridade que a IARPA confere à área de big data. Para a elaboração de uma conclusão razoável ou uma de predição confiável, faz-se necessário analisar o máximo possível de variáveis de um problema. Não é possível analisar todas essas variáveis se fontes de dados forem ignoradas em função da incapacidade de processamento.
No mundo moderno, o investimento mais relevante que uma agência de Inteligência pode fazer é justamente em Inteligência, contudo, em sua vertente artificial. Além de aumentar a capacidade de processar dados, esse investimento, em longo prazo, reduz custos e melhora o produto da Inteligência. Afração operacional, à guisa de exemplo, não precisa ser acionada em certas situações para confirmar dados que possam ser inferidos a partir da IA aplicada em mídias sociais. A fração analítica, por sua vez, não precisa perder tempo navegando por milhares de páginas da internet, fóruns ou plataformas de mídias sociais se a inteligência artificial conhece o interesse específico do analista e já filtra e apresenta apenas os resultados relevantes de acordo com o momento e o assunto.
Os profissionais de Inteligência que não contarem com esses instrumentos serão soterrados pela avalanche de dados produzidos pela Sociedade da Informação. As agências que ignorarem essa realidade arriscam-se a entregar produtos incompletos e, assim, perder relevância. Oque o governo estadunidense percebeu, ainda em 2006, é algo que ficará cada vez mais evidente: não haverá Inteligência relevante sem ferramentas analíticas de big data .
Capacidade Preditiva
Um dos principais aspectos da Atividade de Inteligência que a torna relevante ao tomador de decisões é seu caráter preventivo (BESSA, 2004, p. 62). Fatos consumados são rapidamente divulgados pela imprensa e, ao governante, interessa saber os fatos antes que eles sejam de conhecimento público. A sociedade espera respostas rápidas de seus dirigentes. Atenta a essa realidade, a PNI estabelece o assessoramento oportuno como um dos pressupostos da atividade de Inteligência: “O trabalho da Inteligência deve permitir que o Estado, de forma antecipada, mobilize os esforços necessários para fazer frente às adversidades futuras e para identificar oportunidades à ação governamental”. (BRASIL, 2016) (grifo nosso)
A DNAI (2016) estabelece quatro tipos de conhecimentos de Inteligência, a saber: informe, informação, apreciação e estimativa. Os dois primeiros referem- se a fatos pretéritos ou presentes e têm sua relevância vinculada à oportunidade e rapidez da difusão. Os dois últimos, por sua vez, voltam-se não apenas para fatos passados, mas para cenários e tendências
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O impacto de big data na atividade de Inteligência
futuras. Para a autoridade tomar uma decisão, muitas vezes é fundamental a capacidade de antever os possíveis desdobramentos de determinada situação de interesse nacional. Para inferir tendências, a instrumentação matemática mostra-se bastante útil.
Em 1976, o demógrafo Emmanuel Todd, em sua obra “La chute finale: Essais sur la décomposition de la sphère Soviétique” 2 previu o colapso da União Soviética (URSS). Ciente de que os dados econômicos oficiais internos do país contavam com pouca confiabilidade, Todd utilizou em sua análise dados demográficos e de comércio exterior (mais facilmente verificáveis). Baseou seu estudo em dados como o crescimento da mortalidade infantil, importações de maquinários e exportações de materiais primários, número de automóveis, quantidade de indivíduos empregados no aparato estatal de segurança e índices de alfabetização. Comparou os dados levantados com os de outras nações comunistas da periferia soviética e percebeu que países como Alemanha Oriental, Tchecoslováquia e Hungria pareciam mais prósperos que a URSS.
Todd parte da premissa de que uma população que conta com alto índice de alfabetização (como a da URSS) é mais suscetível a revoltar-se em longo prazo caso não perceba melhorias substantivas na sua qualidade de vida. Apujança militar soviética, sua força política e o desenvolvimento em certos campos científicos encobriam anomalias estruturais de sua sociedade. Uma análise mais cuidadosa dos poucos dados
confiáveis disponíveis daquele país permitia inferir uma deterioração da situação do país e da população. O demógrafo concluiu que a União Soviética, da forma como estava estruturada, era insustentável em longo prazo.
Verifica-se, contudo, a necessidade de adotar certos cuidados no emprego de instrumentos estatísticos. Suponha-se, por exemplo, um sistema de inteligência artificial com acesso à dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e da Fundação Nacional de Saúde, do mesmo país. Seus algoritmos poderão detectar uma forte vinculação (correlação de Pearson 3
de 95.86%) entre o número de títulos de doutorado em engenharia civil concedidos entre 2000 e 2009 e o consumo per capita de queijo mozarela no mesmo período (VIGEN, 2015), conforme mostrado na figura 1. Esse sistema poderia emitir as seguintes conclusões:
• Se há um aumento no consumo de queijo, mais doutores serão formados
• Se no próximo ano espera-se um número maior de doutorandos, os fazendeiros deveriam aumentar a produção.
2 Trad. de John Waggoner: “The final fall: an essay on the decomposition of the Soviet sphere” (1979).
3 Segundo Dicionário Estatístico de Cambridge como “um índice que quantifica a relação linear entre um par de variáveis” (EVERITT; SKRONDAL, 2010, trad. nossa).
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Figura 1 – correlação entre doutorados em engenharia civil e consumo de queijo mozarela (Fonte: www.tylervigen. com)
Um analista humano sensato perceberá, rapidamente, tratar-se de uma coincidência estatística. Uma máxima estatística preceitua que correlação não implica causalidade (CALUDE & LONGO, 2016, p. 05). Não se deve confundir simultaneidade com causalidade. Contudo, o fato de um sistema automatizado detectar essa correlação constitui um feito marcante, pois mostra a capacidade do sistema identificar padrões similares em uma grande massa de dados heterogêneos.
Alguns autores postulam que empregando poder de processamento suficiente em grandes volumes de dados, obtém-se considerável quantidade de correlações (FLETCHER, 2014; POPPELARS apud CALUDE & LONGO, 2016, p. 04-06). Correlações podem ser úteis por causa de seu potencial poder preditivo.
O investimento em análise por big data já é uma realidade no mundo da Inteligência estadunidense. Uma das quatro grandes linhas de pesquisa da IARPA, como mencionado anteriormente, é a Inteligência
Antecipatória. Um de seus programas, o Open Source Indicators (OSI), financiou, a partir de 2012, o projeto EMBERS (Early Model Based Event Recognition using Surrogates). Esse sistema baseia- se em dados disponíveis publicamente para predição de eventos socialmente significativos na população, tais como protestos, focos de epidemias e resultados eleitorais (DOYLE et al, 2014, pg. 185).
O EMBERS foi modelado para permitir o emprego conjunto de cinco modelos preditivos distintos aplicados a fontes abertas de 10 países latino-americanos, a saber: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, México, Paraguai, Uruguai e Venezuela (RAMAKRISHNAN, 2014, p. 02-05). Iniciando em Novembro de 2012, o EMBERS gerava cerca de 50 predições diárias, enviando-as à IARPA em tempo real. Entre os principais resultados da pesquisa encontra-se a predição do crescimento e da posterior diminuição dos incidentes (eventos) relativos aos protestos populares de Junho de 2013 no Brasil e aos protestos estudantis de Fevereiro de 2014
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na Venezuela (RAMAKRISHNAN, 2014, p. 14; DOYLE et al, 2014, p. 186). O artigo de Ramakrishnan (2014, p. 13-15) mostra que alguns modelos preditivos funcionam melhor em países com alto uso de mídias sociais (Brasil, Venezuela e México), como o Twitter, e no caso do Brasil, apresentou um tempo de antecipação4 (lead time) médio de 11,82 dias.
Muitos analistas questionaram se teria sido possível prever a Primavera Árabe (RAMAKRISHNAN, 2014, p. 01) utilizando os dados abertos disponíveis. No ano de 2007, Courbage e Todd (2011) afirmam que as sociedades islâmicas estão em um processo de modernização evidenciado pelo aumento nas taxas de alfabetização. Os autores analisam ainda esse fator educacional em combinação com o papel das mulheres na sociedade e constatam quedas significativas nas taxas de fertilidade e tendências de natalidade nesses países. Concluem que as sociedades islâmicas se encontram em um caminho de modernização já trilhado pelas sociedades ocidentais desenvolvidas e que distúrbios sociais seriam consequências naturais desse processo.
Kalev Leetaru (2011), por sua vez, mostrou, em um estudo retrospectivo, que teria sido possível prever alguns eventos significativos para a Atividade de Inteligência utilizando ferramentas analíticas de big data. Foram utilizados como dados, mais de 30 anos
de notícias traduzidas de serviços de monitoramento de fontes abertas do Reino Unido (SWB)5 e dos Estados Unidos (FBIS)6 . A pesquisa adotou uma abordagem focada no “tom7 da notícia (news tone) e localização geográfica.
Quantificando o tom da notícia, Leetaru constatou que, no Egito, o tom negativo registrado em Janeiro de 2011 havia sido atingido, nos últimos 30 anos, apenas uma vez, por ocasião da Guerra do Golfo de 1991. Concluiu que essa elevada negatividade no tom das notícias seria indício de possível distúrbio social. Para Leetaru, essa Inteligência de fontes abertas funcionou melhor que a Inteligência de Estado, pois o presidente americano permaneceu apoiando o presidente egípcio Mubarak (BBC, 2011), que seria retirado do poder em pouco tempo. Resultados semelhantes foram encontrados para a Tunísia e para a Líbia (LEETARU, 2011). Analisando a Arábia Saudita, por outro lado, constatou que o tom negativo de Janeiro de 2011 já havia sido atingido diversas vezes nos últimos anos sem grandes perturbações sociais ou no sistema político, o que seria indicativo de maior estabilidade social e política. Com efeito, nesse último país, os impactos da Primavera Árabe foram inferiores aos de muitas outras nações da região.
Empregando as mesmas fontes, utilizando, porém, a dimensão geográfica das notícias,
4 Definida como a diferença entre a data que o evento é reportado pelos jornais (verificado por analistas humanos) e a data em que a previsão foi feita. Corresponde a ideia do número de dias pelos quais a predição “venceu a mídia” (beat the news) (RAMAKRISHNAN, 2014, p. 11).
5 Summary of World Broadcasts, da BBC.
6 Antigo Foreign Broadcast Information Service, atualmente Open Source Center da Agência Central de Inteligência (CIA)
7 Utiliza-se, mais comumente, a expressão “sentimento”, ao invés de “tom”.
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Leetaru mapeou as citações a Osama Bin Laden nas notícias entre Janeiro de 1979 e Abril de 2011. Embora muitos acreditassem que o líder da Al Qaeda estivesse no Afeganistão (BBC, 2011), a análise de conteúdo de notícias proposta teria sugerido que Bin Laden estaria no norte do Paquistão, em um raio de 200 km envolvendo Islamabad e Peshawar – uma considerável redução de escopo, à época. Concluiu também que seria duas vezes mais provável que Bin Laden estivesse no Paquistão que no Afeganistão.
Ainda em relação à Primavera Árabe, pesquisadores do Centro de Combate ao Terrorismo de West Point e da Universidade de Princeton rastrearam, a partir de Janeiro de 2011, as pesquisas feitas no Google a partir do Egito e constataram que havia mais buscas por eventos relativos à Tunísia (estopim da Primavera Árabe) do que por estrelas de entretenimento egípcias (TEMPLE-RASTON, 2012). Também a partir de fontes abertas, a empresa Recorded Future previu, em janeiro de 2010, que uma combinação de enchentes, fome e terroristas islâmicos levaria o Iêmen ao desastre8 (TEMPLE-RASTON, 2012).
Os exemplos de predições mencionados oferecem algumas lições para a atividade de Inteligência na era da Informação. Primeiramente, é preciso saber selecionar os dados relevantes de acordo com os objetivos da análise. Os dados de temperatura máxima e mínima em algum vilarejo dos montes Urais na Rússia, por exemplo, podem ter importância para algum
estudo no campo da climatologia, mas não para o propósito do estudo de Todd que previu o colapso soviético. Também no mundo de big data é preciso saber filtrar os dados relevantes do ruído, isto é, separar as frações significativas da massa de dados irrelevantes que as acompanham.
Uma segunda lição diz respeito à importância do ser humano. A previsão da queda soviética foi possível porque um pesquisador humano selecionou as variáveis do problema (dados relevantes), estabeleceu premissas e critérios analíticos e inferiu conclusões a partir da análise dos dados coletados. Sistemas de inteligência artificial permitem o reconhecimento de padrões e tendências de forma mais rápida e a partir de uma quantidade consideravelmente maior de dados, contudo, se não for modelado corretamente por seu projetista, poderá levar a conclusões errôneas (como o exemplo anterior envolvendo o queijo mozzarela).
Tanto o homem quanto a máquina falham na tarefa preditiva. Por um lado, a inteligência artificial ainda não é capaz de interpretar com precisão a linguagem natural (FILHO, 2016). Também apresenta dificuldades em discernir coincidências estatísticas de outras correlações realmente significativas. Por outro lado, o ser humano possui capacidade limitada de coleta e armazenamento de dados. Afirmam Tetlock e Gardner (2016, p. 04) que a taxa humana de acerto em previsões de longo prazo é de 15% e seria, portanto, semelhante à de um chimpanzé arremessando dardos.
8 A Primavera árabe chega ao Iêmen em Janeiro de 2011. Disponível em: <www.bbc.com/news/world- middle-east-14704951>. Acesso em: 10 fe. 2018..
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O impacto de big data na atividade de Inteligência
Para o diretor da IARPA, Jason Matheny, os melhores sistemas preditivos são aqueles que utilizam combinações homem-máquina (LAVINDER, 2016). Filho (2016) lembra que cumpre ao analista “estabelecer parâmetros corretos para que o software possa encontrar o padrão que mais interessa”. Para Matheny, “o componente analítico humano é vital porque não há algoritmo que a máquina possa usar para predizer o comportamento humano” (LAVINDER, 2016). Portanto, na atividade de Inteligência, homem e máquina se complementam e se potencializam.
Convém observar também que os exemplos de predições mencionados cobrem temas particularmente relevantes para o PDN, como terrorismo, processo democrático e perturbações da ordem política e social. A PNI elenca entre suas ameaças o terrorismo e as ações contrárias ao Estado Democrático de Direito (BRASIL, 2016). Estabelece também como pressupostos da Atividade de Inteligência a abrangência e o assessoramento oportuno.
Para Bessa (2003, p.62), fornecer conhecimentos antecipados ao usuário é o mais importante papel da Inteligência. Segundo afirma Vidigal (2004, p. 14):
[...] “para qualquer governo, é essencial a posse de informações que lhe permitam,
no campo interno, identificar a existência
de problemas que possam vir perturbar a ordem pública, a paz social ou prejudicar a economia, e, no campo externo, identificar as ameaças que possam se contrapor aos interesses nacionais”.
Uma das possibilidades que a área de big data oferece e que a torna mais atrativa à Inteligência, portanto, consiste em utilizar
a tecnologia para antecipar perturbações sociais e econômicas ou outras ameaças aos interesses nacionais. Uma correta combinação de recursos humanos e tecnológicos confere à atividade de Inteligência capacidade preditiva singular que a torna cada vez mais indispensável ao processo de tomada de decisões estratégicas.
Democracia em Risco
A Atividade de Inteligência deve permanecer atenta a ações, no ambiente cibernético, que possam obstar a consecução de interesses nacionais. Afirma a PNI que “os prejuízos das ações no espaço cibernético não advêm apenas do comprometimento de recursos da tecnologia da informação e comunicações. Decorrem, também, da manipulação de opiniões, mediante ações de propaganda ou de desinformação” (BRASIL, 2016). As primeiras ações, que comprometem diretamente os ativos tecnológicos, são mais facilmente observáveis e correspondem aos “ataques hacker” mais comuns. As últimas, no entanto, são mais sutis e envolvem o exercício de poder de influência e manobra sobre o conjunto da sociedade. Convém que a Inteligência de Estado compreenda como a área de big data atua nessa esfera de poder e como desenvolveu essa capacidade.
O norte-americano Norbert Wiener é creditado como o criador da cibernética (HELBING et al, 2017). O matemático mostrou, ainda na década de 1940, que o comportamento dos sistemas poderia ser controlado por meio de controles de retroalimentação (feedbacks) que corrigiriam as entradas (insumos) de um processo de
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acordo com as saídas (resultados) obtidas. Logo pesquisadores começaram a imaginar que poderiam utilizar esse mesmo princípio para controlar a economia e a sociedade (HELBING et al, 2017).
Àépoca de Wiener, a tecnologia digital ainda engatinhava e a internet e a conectividade não eram conceitos tão onipresentes na vida das pessoas. No mundo digital contemporâneo, estamos constantemente navegando online e quando o fazemos, nos deparamos continuamente com escolhas: o que comprar, o que ou quem seguir, o que ler, o que acreditar (CHATFIELD, 2016). Nesse contexto, as gigantes da economia digital parecem seguir o caminho de controle da sociedade previsto pelos pesquisadores do início da era cibernética. Google, Facebook, Amazon, Apple e Microsoft contam com uma gama de dados pessoais que permitem conhecer o que a pessoas querem, fazem, pensam ou sentem.
A esse respeito, um estudo apontou que os algoritmos têm melhor desempenho em uma tarefa cognitiva e social elementar: o julgamento de personalidades (YOUYOU et al, 2014). Utilizando como base questionários preenchidos por voluntários e por seus amigos e pessoas próximas e computando também o “rastro” digital (Likes do Facebook) dos voluntários, a pesquisa indica como uma de suas conclusões que as respostas previstas pelo algoritmo com base nos Likes do Facebook se aproximavam mais do auto-questionário que as respostas dos amigos. Por meio do Facebook, portanto, é possível saber mais sobre uma pessoa que seus conhecidos mais próximos.
O conhecimento que possui sobre os usuários é um dos principais insumos utilizados por Facebook, Google e outros gigantes tecnológicos para personalizar a experiência do usuário. A maioria das pessoas acredita que os resultados de pesquisa do Google são idênticos para qualquer internauta (PARISER, 2011, p. 01), mas Pariser (2011) lembra que duas pesquisas idênticas podem trazer resultados diferentes. Com efeito, a Google anunciou, em 4 de dezembro de 2009, que iria customizar os resultados das pesquisas em seu buscador (PARISER, 2011, p. 01). Isso implicou que os algoritmos da empresa começaram a fazer predições sobre quem o internauta é e que tipo de sites ele gostaria de ver e, em consequência, os resultados mostrados não mais seriam os considerados mais relevantes, mas sim os que o Google acreditava que haveria maiores chances de serem clicados pelo usuário (PARISER, 2011, p. 01).
Pariser (2011, p. 06) cunhou o termo “Bolha de Filtros” (Filter Bubble) para explicar como os algoritmos de personalização dos gigantes tecnológicos inserem os internautas em uma bolha de informações filtradas. Os serviços oferecidos por empresas como Google, Facebook, Amazon, Apple e Microsoft criam um universo único (“bolha”) para cada indivíduo (PARISER, 2011, p. 06), no qual ele passa a ter acesso a notícias e informações que confirmam as opiniões e visões de mundo que já possui, tendo acesso limitado a conteúdos com opiniões diversas.
Como o filtro mostra informações baseadas em interesses pessoais e esconde
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O impacto de big data na atividade de Inteligência
assuntos com os quais os indivíduos não tem familiaridade, as pessoas acabam aprendendo menos. Conforme Siva Vaidhuanathan (apud PARISER, 2011, p.91), “[...] o aprendizado é por definição um encontro com o que você não sabe, o que você não pensou, o que você não pôde conceber e o que você não entendeu ou acreditou ser possível”(trad. Nossa). Portanto, as pessoas mais educadas da era digital, isto é, aquelas que leem mais conteúdos fornecidos na “bolha”, acabam, paradoxalmente, aprendendo menos, pois tem menos contato com informações previamente desconhecidas.
À época do Brexit (Plebiscito para decidir sobre a saída do Reino Unido da União Europeia), um usuário do Facebook explicou que teve muitas dificuldades para encontrar notícias sobre a vitória do “Deixo” no pleito. Identificando-o como partidário do “Fico”, o sistema de notícias não permitia que ele visualizasse conteúdo da campanha vitoriosa do “Deixo” (NEJROTTI, 2016). Segundo Nejrotti (2016), “o Facebook está se tornando uma câmara de eco que nos previne de sermos confrontados por opiniões com as quais não concordamos”. Dado que nos Estados Unidos, por exemplo, 62% das pessoas tem a rede de Mark Zuckerberg (fundador do Facebook) como uma das principais fontes de informação, os filtros do Facebook podem exercer considerável influência sobre a sociedade.
Richard Thaler, prêmio Nobel em Economia em 2017, introduz, juntamente
com Cass Sunstein, o conceito de “nudge” 9 : “qualquer aspecto da arquitetura de escolhas que altera o comportamento das pessoas de maneira previsível sem proibir nenhuma opção nem mudar significativamente seus incentivos econômicos” (THALER; SUNSTEIN, 2009, p. 06). Em outras palavras, trata-se de um mecanismo de sugestão (“empurrão”) que influencia a decisão do indivíduo.
Para exemplificar como pequenos “empurrões” podem influenciar decisões, o economista remete à pesquisa de Johnson e Goldstein (2003 apud. THALER; SUNSTEIN, 2009) acerca das decisões de doação de órgãos. Os pesquisadores comparam as abordagens de consentimento explícito (a pessoa precisa declarar por escrito o desejo de ser doador de órgãos) e consentimento presumido (a pessoa precisa declarar por escrito que não deseja doar). Países que adotam a primeira apresentam índices de doadores relativamente baixos, como Holanda (27,5% da população), Alemanha (12%) e Dinamarca (4,25%). Por outro lado, países que partem do pressuposto que todos são doadores salvo em caso de manifestação em contrário apresentam números significativamente mais favoráveis, como, por exemplo, Áustria (99,98%), França (99,91%), Portugal (99,64%) e Suécia (85,9%). Conclui-se que o simples fato de um governo adotar o consentimento presumido é uma medida que influencia positivamente o cadastro de doadores de órgãos. Governos e organizações podem apropriar-se do conceito de “nudge” para
9 O termo não possui uma tradução precisa para a língua portuguesa. A tradução brasileira (Elsevier Editora, 2009) do livro de Thaler e Sunstein utiliza os termos “empurrão”, “cutucada” e “orientação”. A tradução lusa (Academia do Livro, 2009), emprega os termos “estímulo”, “empurrãozinho” e ‘toque”.
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o interesse comum da sociedade ou para outros interesses espúrios.
A “Bolha de Filtros”, caracteriza-se como um instrumento de “nudging”, pois trata- se de um mecanismo capaz de influenciar decisivamente as escolhas pessoais. Quanto maior a quantidade de decisões individuais influenciadas, maior a ingerência no conjunto da sociedade. Democracia e livre escolha, no entanto, são conceitos indissociáveis (ROSENFIELD, 2010). Quando a liberdade de escolha sofre alguma interferência, a própria democracia é abalada. A Inteligência de Estado deve estar atenta a essa questão, pois a PNI elenca as ações contrárias ao Estado Democrático de Direito como uma das ameaças que balizam as atividades do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) (BRASIL, 2016).
No mundo digital, quanto mais se sabe sobre as pessoas, menos provável é que suas escolhas sejam livres (HELBING et al, 2017). Um experimento social conduzido na Índia, por ocasião das eleições para o Lok Sabha, a câmara baixa do Parlamento indiano, demonstrou a potencial influência que o Google pode ter sobre resultados eleitorais. Uma amostra de 2150 eleitores indecisos teve, no dia das eleições, a ordem dos 30 primeiros resultados de suas pesquisas no Google relativas às eleições alterada para favorecer um ou outro candidato. Essa simples mudança na ordem de apresentação dos resultados foi capaz de influenciar mais de 20%10 dos indecisos em favor do candidato beneficiado pelo buscador (EPSTEIN; ROBERTSON, 2014, p. E4520). Para os pesquisadores,
essa taxa pode ainda ser substancialmente melhorada se o experimento for realizado por semanas ou meses antes de um pleito.
Os resultados implicam que, se 80% dos votantes acessam a internet, e 10% deles forem indecisos, essa manipulação poderia levar cerca de 25% desses indecisos a apoiarem determinado candidato (EPSTEIN; ROBERTSON, 2014, p. E4520). Isso significa um ganho de 2% do eleitorado total. Como cerca de um quarto das eleições nacionais ao redor do mundo são ganhas por uma margem inferior a 3%, essa manipulação poderia impactar – ou, talvez, já esteja impactando – resultados de votações em diversos países (EPSTEIN; ROBERTSON, 2014, p. E4519-E4520).
O Brasil também têm sido palco da crescente influência das novas tecnologias no processo democrático. Ferramentas de big data nas mídias sociais têm sido cada vez mais empregadas em diversos eventos de porte nacional (como eleições ou protestos), conforme apontam estudos da Universidade de Oxford (ARNAUDO, 2017) e da Fundação Getúlio Vargas (RUEDIGER, 2017). Essa realidade começou a se tornar evidente na disputa presidencial de 2014, marcada por crescente acirramento político e que teve aproximadamente 11% das discussões no Twitter geradas por robôs (bots). Na greve geral de 28 de Abril de 2017, esse percentual subiu para cerca de 20%.
Também significativo é o exemplo do uso de fake news (notícias falsas) na eleição presidencial americana de 2016.
10 Essa taxa foi chamada pelos pesquisadores de Poder de Manipulação de Voto.
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Representantes do partido Democrata, da candidata derrotada Hillary Clinton, realizaram investigação nas redes sociais e alegam ter encontrado evidências de que as fake news disseminadas contra a candidata conseguiram mudar a posição de eleitores indecisos (CALABRESI, 2017). Relatório do governo americano indica que a Rússia empreendeu uma campanha multifacetada de propaganda e influência, com notório emprego de mídias sociais e atividades cibernéticas (DIRECTOR OF NATIONAL INTELLIGENCE, 2017). James Clapper, ex-Diretor de Inteligência Nacional (DNI), afirma que o episódio da campanha russa constitui ameaça à própria fundação do sistema político e democrático (CALABRESI, 2017).
Oepisódio da eleição americana demonstra o emprego intensivo de espionagem interestatal entre grandes atores do cenário político mundial. A prática não é nova, contudo ganhou contornos massivos com o crescimento da inteligência cibernética. Edward Snowden11 já havia apresentado ao mundo os programas PRISM, XKeyscore, Fairview e outros empregados pela estrutura de Inteligência estadunidense na interceptação massiva das telecomunicações mundiais. Os documentos vazados por Snowden também mostram que o governo estadunidense havia espionado comunicações da Petrobrás, do Ministro das Minas e Energia e da própria Presidente da República (REVELATIONS, 2018). O conhecimento antecipado de planos e intenções das maiores autoridades e da maior empresa nacional confere a seu
detentor vantagem estratégica considerável em negociações comerciais, diplomáticas ou políticas.
A PNI alerta para a ameaça das Ações Contrárias à Soberania Nacional, definindo- as como aquelas “que atentam contra a autodeterminação, a não-ingerência nos assuntos internos e o respeito incondicional à Constituição e às leis” (BRASIL, 2016). Elenca também entre as ameaças a Interferência Externa, entendida como “a atuação deliberada de governos, grupos de interesse, pessoas físicas ou jurídicas que possam influenciar os rumos políticos do País com o objetivo de favorecer interesses estrangeiros em detrimento dos nacionais” (BRASIL, 2016). Cita ainda como ameaças os Ataques Cibernéticos e as Ações Contrárias ao Estado Democrático de Direito (BRASIL, 2016). Entre as diretrizes da PNI está a determinação de “expandir a capacidade operacional da Inteligência no espaço cibernético”, em cujo domínio torna-se “primordial acompanhar, avaliar tendências, prevenir e evitar ações prejudiciais à consecução dos objetivos nacionais” (BRASIL, 2016).
Analisando o balizamento fornecido pela PNI em conjunto com os exemplos anteriores, percebe-se a necessidade premente de investimento da Inteligência nacional em suas capacidades na área de big data, sob o risco de deixar o país à mercê de agentes adversos ao interesse nacional. A incapacidade de interagir nesse ambiente tecnológico e avaliar de modo preciso suas ameaças ensejam riscos aos valores
11 Edward Snowden é um ex-funcionário terceirizado da NSAque, em 2013, gravou grande quantidade de dados sobre os programas de interceptação daquela organização e tornou-se delator, entregando os dados para publicação por alguns jornalistas escolhidos.
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democráticos e à autodeterminação do país.
Considerações Finais
A Era da Informação, caracterizada pelo constante incremento da quantidade de dados produzidos, está transformando o mundo. Indivíduos, organizações e nações precisam adaptar-se a esse novo paradigma tecnológico. Como observa a PNI, esse cenário de célere evolução amplia o papel da Inteligência e impõe aos seus profissionais uma constante reavaliação de sua contribuição. Odomínio das técnicas e ferramentas de big data é essencial para que a Inteligência cumpra o que a sociedade espera dela, conforme os preceitos preconizados pela PNI.
Organizações e Estados com maior expertise na área de big data podem interferir decisivamente nos rumos de uma sociedade, muitas vezes em detrimento dos interesses nacionais. Para poder controlar seu destino, o país precisa ser capaz de avaliar as ameaças que o ambiente tecnológico enseja. Acompanhar e avaliar as conjunturas interna e externa, assessorando o processo decisório nacional e a ação governamental é um dos objetivos da Inteligência nacional (BRASIL, 2016).
Essa tarefa analítica, no entanto, é dificultada pela quantidade de dados disponíveis ao profissional de Inteligência. O emprego de ferramentas de IA na coleta e análise de dados auxilia grandemente o analista a compreender a complexidade crescente do mundo contemporâneo. Proporciona também capacidade preditiva que torna a Inteligência não apenas desejável, mas também essencial à estratégia nacional.
Dominando as ferramentas de big data, a atividade de Inteligência tem seu papel e importância amplificados no assessoramento oportuno do processo decisório. O conhecimento preciso, antecipado e, por vezes, preditivo proporciona vantagem competitiva ao país e permite reposicioná-lo no quadro das relações de poder do cenário mundial.
No mundo contemporâneo, tornaram- se essenciais aos órgãos de Inteligência o manejo adequado de ferramentas e tecnologias, a formação de profissionais capacitados e uma mudança de cultura institucional que permita que o analista tenha a percepção holística de que os cenários de Inteligência com que trabalha são também ambientes de big data. Para acompanhar a celeridade da evolução tecnológica, a atividade de Inteligência precisa estar continuamente se reinventando.
Os órgãos de Inteligência se deparam, portanto, com um desafio tecnológico que oferece riscos e oportunidades. Por um lado, aqueles que ignorarem a realidade de big data e continuarem a trabalhar exclusivamente com fontes humanas, como se ainda operassem nos tempos da Guerra Fria, se arriscam a apresentar um produto final anacrônico, incompleto e, quiçá, irrelevante. Por outro lado, os órgãos de Inteligência que se apropriarem do poder das ferramentas de big data podem se tornar imprescindíveis ao processo decisório e, dessa forma, participar da construção histórica de uma nação mais forte e soberana.
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AMBIENTES COMPLEXOS E A SUPERAÇÃO DA GESTÃO POR COMANDO E CONTROLE NAS OPERAÇÕES DE INTELIGÊNCIA
Marcelo Furtado M. Paula *
Resumo
A gestão baseada em comando e controle pressupõe o exercício de direção centralizada, com pouca liberdade criativa e decisória para as equipes. Inspirada em modelos gerenciais de princípios do século passado, como o taylorismo e o fordismo, tende a ser pouco efetiva em cenários complexos, caracterizados pela multiplicidade de conexões entre os atores, imprevisibilidade e mudanças constantes. Nesses cenários, planejamentos minuciosos de tarefas são contraproducentes porque variáveis inopinadas alteram, inexoravelmente, as condições que os baseiam. Por meio de uma revisão de literatura, esse trabalho objetiva apresentar instrumentos de gestão que rompam com a estrutura de comando e controle e aportem contribuições significativas ao gerenciamento da Atividade de Inteligência. Esses modelos privilegiam a adaptabilidade e a resiliência, entregando poder de decisão aos executores e alterando a função das lideranças. Os gerentes passam a ser responsáveis por melhorar as relações entre as equipes e seus canais de comunicação, em lugar de planejar tarefas. Equipes de alto desempenho tornam-se a essência das organizações e articulam-se em rede, superando as ligações verticais.
Palavras-chaves: Gestão, Inteligência, Comando e Controle
COMPLEX ENVIRONMENTS ANDTHE OVERCOMING OF COMMAND-AND-CONTROL MANAGEMENT IN INTELLIGENCE
OPERATIONS
Abstract
Command-and-control management demands a centralized organizational structure, restricting teams’ creativity and decision power. Developed from last century’s managements frameworks, like Taylorism and Fordism, tends to be less effective in complex environments, usually featured by multiple connections between its actors, unpredictability and constant change. In these scenarios, thorough task planning is inefficient because unexpected variables change the underlying basis of the panning. Through a brief literature review, this paper intends to show management tools that break the command-and-control structure and enhance the Intelligence managerial competence. These models rely on adaptability and resilience, delivering decision power to the operational level and shifting the leadership’s role. Managers turn responsible of improving liaisons between teams, instead of planning tasks. High performance teams become the organization’s building block and operate as networks, overcoming the vertical structure.
Keywords: Management, Intelligence, Command and Control.
* Oficial de Inteligência
Artigo recebido em julho/2018
Aprovado em setembro/2018
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Marcelo Furtado M. Paula
Introdução
Ao longo do século XX, agências de Inteligência se estruturaram em modelos de gestão baseados em comando e controle que conformaram seus desenhos institucionais e cultura organizacional (McCHRYSTAL, 2015; RUBIN, 2013; SUTHERLAND, 2016). É o caso, por exemplo, do Serviço Nacional de Informações (SNI), da Central Intelligence Agency (CIA) e do Comitê de Segurança do Estado (KGB). Pela definição do Departamento de Defesa norte-americano (EUA, 2017), “Comando e Controle” é o “exercício de autoridade e direção, no cumprimento da missão, por um comandante devidamente designado sobre as forças que lhe estão atribuídas e associadas” (tradução). Segundo McChrystal (2015), esse modelo sofreu influência da administração científica de taylorismo e do fordismo1, teorias que revolucionaram a indústria na primeira metade do século passado.
Ogerenciamento conformado nessa maneira de pensar demanda planejamento minucioso e objetiva ganhos de eficiência. No caso das agências de Inteligência brasileiras, essa cultura gerencial se manifesta, por exemplo,na maneira criteriosa com que as Operações de Inteligência são planejadas de forma a garantir o cumprimento da missão e a proteção das identidades do órgão e de seu pessoal, com o mínimo de custo e risco.
Ocorre que as Operações de Inteligência estão geralmente inseridas em cenário complexo, caracterizado por mudanças constantes e existência de variáveis significativas desconhecidas e independentes. Com o avanço das tecnologias de informação, esse cenário se torna ainda mais líquido2. Como afirma Clark (2010), o alvo de inteligência típico não é mais um indivíduo, fato ou instalação, mas um sistema em rede complexo.
Além disso, as demandas das frações analíticas estão sujeitas a mudanças constantes. Novos dados obtidos, alterações de cenário, mudanças no interesse do decisor e a própria dinâmica dos alvos interferem nas demandas a serem atendidas. O modelo analítico pode mesmo alterar- se com tudo mais constante, resultado de novas percepções do analista. Segundo Clark (2010, p. 31-32), “não há definição conclusiva de problema na Inteligência. (...) Na medida em que o usuário de Inteligência aprende mais sobre os alvos, as suas necessidades e interesses mudarão” (tradução nossa). Tampouco é recente a percepção dos impactos contraproducentes da especialização e, já em 1949, Sherman Kent (2015, p. 109) criticava o modelo fordista3 de produção do conhecimento, destacando a necessidade de profissionais que, além de qualificados, tenham visão do todo. Aespecialização e a compartimentação,
1 Para uma introdução a respeito do tema e os impactos da organização do trabalho taylorista e fordista na sociedade do século XX e sua superação, ver HARVEY, 2008.
2 Bauman (2001) afirma que vivemos em tempos líquidos, em que nada foi feito para durar. Segundo o autor, as relações sociais foram modificadas na modernidade, tornando-se líquidas, fluidas, inconstantes e não duradouras. Isso se deve, particularmente, às novas tecnologias, ao individualismo e ao consumismo. Retomamos a ideia de “cenário líquido” com o objetivo de reforçar a noção de mudança e inconstância.
3 Embora não utilize o termo, as características do modelo criticado por Kent são eminentemente fordistas.
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Ambientes complexos e a superação da gestão por comando e controle nas operações de Inteligência
claro está, favorece a profundidade de conhecimento, mas, no limite, provocam viés de cognição e déficit de informações.
A partir dessas ideias, este ensaio realiza uma revisão de literatura que avalia a atualidade do gerenciamento baseado em comando e controle na Atividade de Inteligência. Objetiva-se apresentar técnicas contemporâneas de gestão 4
crescentemente aplicadas na indústria, com efeitos observáveis de ganho de tempo e qualidade, e que podem ser absorvidas pela gestão pública em proveito do desempenho de suas instituições. Para isso, apresentam- se os conceitos de ambientes complicado e complexo, buscando identificar, para esse último, métodos gerenciais que superem o comando e controle. Pretende-se demonstrar que métodos que proporcionam resiliência às organizações e que permitam planejar em contexto complexo, com adequação dos níveis de tomada de decisão e construir equipes de alto desempenho atendem primorosamente as Operações de Inteligência.
Comando e Controle
Como observado na introdução, a cultura gerencial taylorista e fordista inspirou a estruturação de organizações em geral, e agências de Inteligência em particular - como é o caso do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) -, no modelo de “comando e controle”. Nesse paradigma, o responsável pelas ações operacionais exerce controle sistemático das atividades, avalia seus resultados e verifica se são
desenvolvidas conforme o planejamento (ESNI, s. d.).
McChrystal (2015, p. 47) demonstra que a estrutura das organizações é, tradicionalmente, uma combinação de colunas verticais (departamentos ou divisões) e escalões horizontais que denotam níveis de autoridade. Nesse desenho, o mais poderoso fica no topo, e é o único escalão capaz de acessar e controlar todas as colunas. Segundo o autor (2015, p. 96), em um comando, o líder distribui tarefas entre as unidades subordinadas. Essas não precisam conhecer suas contrapartes. No comando, as conexões são ligações verticais: uma unidade comunica-se com seu superior e seus inferiores, sem vínculos laterais.
Contudo, como observa Sabbagh (2013, p. 33), “abordagens tradicionais de gestão com comando e controle não são eficientes nesses contextos de mudança e imprevisibilidade”. Exigem ainda grande quantidade de requisitos escritos que, como critica Sutherland (2016), são geralmente inúteis.
Clark (2010, p. 13-15) defende que a Inteligência atue como processo em rede, social, com todos os participantes focados no objetivo. Se as partes interessadas compartilharem informações de forma sistemática ou como processo dinâmico de gestão do caso ou conhecimento, terão melhores condições de identificar lacunas em seu conhecimento e compreender as questões que o rodeiam.
4 Particularmente aquelas inspiradas no Manifesto para o Desenvolvimento Ágil de Software (Beck et al., 2001).
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Marcelo Furtado M. Paula
Um gerenciamento da Atividade de Inteligência que rompa com o modelo de comando e controle e se baseie na interação entre as partes interessadas, seja iterativo (no sentido de repetir-se recorrentemente) e estruturado para incorporar a mudança (no lugar de ater-se a um plano detalhado), contorna as dificuldades causadas pela complexidade do ambiente e tende a ganhar em agilidade. Como resultado, espera-se reduzir custos, prazos e riscos, além de atingir resultados melhores.
Em lugar das ligações verticais do modelo de comando e controle, autores como Sutherland (2016) e McChrystal (2015) sugerem a estruturação de conectividades horizontais – ou seja, potencializar as ligações entre unidades situadas no mesmo nível hierárquico. Isso é muito diferente daquilo que comumente se observa nas organizações contemporâneas. As conectividades horizontais desafiam a noção de autoridade e chefia, centrais no paradigma de comando e controle.
Complicado e Complexo
As mudanças tecnológicas das últimas décadas, particularmente relacionadas ao dinamismo da informação, tornou o mundo mais interdependente e acelerado. Milton Santos (1993) atribui essa fluidez ao que chamou de tirania do mercado, enquanto Susan Strange (1998) argumenta que a aceleração da globalização provocou o enfraquecimento do poder político dos Estados. Esse fenômeno altera o ambiente em que estão inseridas empresas e organizações governamentais, criando um estado de complexidade.
McChrystal (2015, p. 57) conceitua coisas complicadas como aquelas constituídas por muitas partes, embora essas estejam ligadas umas às outras de formas relativamente simples. Exemplo de estrutura complicada são os motores de combustão interna. Não obstante suas muitas peças sejam de difícil compreensão, seu funcionamento pode, em última instância, ser dividido em uma série de relações simples, coerentes e determinísticas.
Para o autor, as coisas são complexas quando o número de interações entre seus componentes é significativamente grande. Em razão dessa densidade de ligações, sistemas complexos variam muito, no sentido de serem instáveis, e por isso apresentam imprevisibilidade acentuada. Na mesma linha, Rubin (2013) conceitua “domínio complexo” como uma situação em que as coisas são mais imprevisíveis do que previsíveis. Respostas ou decisões corretas, se é que existem, são percebidas com pouca ou nenhuma antecedência.
A cultura organizacional inspirada em taylorismo e no fordismo é altamente eficiente para trabalhar com problemas complicados, em processos conhecidos e replicáveis em escala. (McCHRYSTAL, 2015; SABBAGH, 2013). Nessa tradição, admite-se que qualquer problema pode ser conhecido em sua totalidade.
Contudo, no estado de complexidade não há entidade capaz de monitorar a quantidade de eventos que ocorrem simultaneamente. A realidade estrutura-se em rede, assemelhando-se mais a um organismo vivo ou ecossistema do que aos sistemas lineares de Taylor (McCHRYSTAL, 2015, p. 71).
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Ambientes complexos e a superação da gestão por comando e controle nas operações de Inteligência
Soluções complicadas não funcionam para problemas complexos. Exemplos dessa inadequação podem ser observados em diversos contextos. No campo militar, a Força Tarefa Conjunta de Operações Especiais norte-americana no Iraque de 2003 a 2008, para fazer frente à Al Qaeda – que se estruturava como uma rede – transformou- se de estrutura complicada para complexa (McCHRYSTAL, 2015).
Ocampo econômico fornece outro exemplo clássico: a União Soviética apresentava uma economia dinâmica e robusta baseada em modelos fordistas de produção até meados da década de 1970, mas não se adaptou às rápidas mudanças que o mundo observava, ao passo que o sistema Toyota de produção indicava ao ocidente o caminho para fazê- lo (SEGRILLO, 2000).
Por fim, no Brasil, a segurança pública se organiza em instituições e escalões especializados, com baixa interação e pouca confiança nas suas relações, para enfrentar um problema complexo em rede que é o crime organizado.
Em contextos muito complexos, planejamentos minuciosos são geralmente irrelevantes, não importa quão engenhosos seus desenhos iniciais (McCHRYSTAL, 2015, p. 69). Isso se deve ao fato de que modelos de gestão baseados em planejamento (comando e controle) necessitam de previsibilidade, o que não é possível em ambientes complexos. As mudanças, inexoráveis e rápidas nesse ambiente, tornam a ancoragem a planos determinados custosa, ineficiente e arriscada. Em última instância, diminuem a probabilidade de se alcançarem os objetivos
estabelecidos.
Independentemente dessa complexidade contemporânea, a Atividade de Inteligência desenvolve-se, desde sempre, em ambientes onde a imprevisibilidade é a regra e a mudança é constante. Os alvos atuam como variáveis independentes, sobre as quais não é possível exercer controle. O ambiente operacional sofre interferência das ações do alvo e de fatores desconhecidos ou inopinados.
Eficiência e Resiliência
Peter Drucker (1963), considerado o pai da Administração moderna, definia eficiência como “fazer certo as coisas”, e eficácia “fazer a coisa certa”. Tornou-se célebre sua afirmação de que não há nada mais inútil do que fazer com grande eficiência algo que não deveria ter sido feito.
Segundo McChrystal (2015, p. 80), o foco da administração de empresas, por mais de um século, esteve na eficiência. Nessa cultura, pretende-se obter o máximo de um resultado x com o mínimo do insumo y. O problema, segundo o autor, é que para otimizar essa equação, é necessário que x e y sejam identificados com antecedência suficiente para se construir mecanismos para converter um no outro. “A busca pela eficiência está baseada na predição” (McCHRYSTAL, 2015, p. 80).
Takeuchi e Nonaka (1986) argumentam que equipes auto-organizáveis – como aquelas observadas em empresas start- up, que desenvolvem sua própria agenda e tomam iniciativas e riscos – são mais
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